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LITERATURA
Em "Sábado", o escritor inglês vê o mundo pós-11 de Setembro ao descrever 24 horas na vida de um neurocirurgião
McEwan desafia a consciência em um dia
SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN
Quando viu um estranho corpo
em chamas rasgar o céu de Londres da sacada de sua casa, durante uma madrugada de insônia, o
neurocirurgião Henri Perowne
pressentiu que aquele não seria
um sábado como qualquer outro.
"Sábado", o mais recente romance do escritor inglês Ian McEwan, 57, é um livro inspirado nas
transformações do mundo pós-11
de Setembro e registra um dia na
vida de um médico bem-sucedido, casado e pai de dois jovens artistas (um músico e uma poeta).
Perowne é um homem que
acredita ferrenhamente na ciência, trata seus pacientes com distanciamento e desconfia dos desvarios literários e das crenças humanitárias da filha Daisy.
Neste sábado específico, ele tem
uma programação rotineira: visitar a mãe doente, jogar squash
com um amigo e reunir-se com a
família para jantar. Estamos, entretanto, às vésperas da invasão
do Iraque pelas tropas americanas e inglesas, num dia em que as
ruas de Londres recebem milhares de manifestantes antiguerra.
A caminho do jogo de squash,
Perowne sofre um acidente de
trânsito em que também está Baxter, um jovem bandido que sofre
de grave doença degenerativa.
Começa, então, uma perseguição,
real e psicológica, em que a irracionalidade de Baxter ameaçará o
dia e a consciência de Perowne.
Leia os principais trechos da entrevista que McEwan concedeu à
Folha, por telefone, de Londres.
Folha - Perowne, que é a favor da
invasão do Iraque, faz uma aposta
com a filha, que é contra. Ele acha
que, três meses depois, os iraquianos viveriam uma situação melhor,
enquanto a filha aposta que o país
estaria uma bagunça. Ao final, parece que Daisy venceu, não é?
Ian McEwan - Não, na verdade
Daisy perdeu, pois o país virou
uma bagunça em apenas dois dias
[risos]. Sempre tive sentimentos
muito misturados sobre a ação
dos EUA e do Reino Unido no Iraque, pois queria ver Saddam deixar o poder, mas tinha dúvidas
sobre a guerra. Acho que o erro
não foi a invasão, e sim a maneira
como se deu a ocupação. Quando
escrevi o diálogo entre pai e filha,
queria fazer com que ambos estivessem corretos e que sintetizassem o que eu pensava.
Folha - O livro tem semelhanças
com "Amor para Sempre". Ambos
os protagonistas são homens que
crêem na ciência e no sucesso material do Ocidente. E ambos giram
em torno de um episódio trágico
-o acidente com um balão naquele livro e um incidente de trânsito
neste. Há um diálogo entre eles?
McEwan - Realmente existem
paralelos entre esses dois livros.
Henri Perowne é o segundo personagem criado por mim a acreditar de forma arraigada na racionalidade e na ciência. O primeiro
foi mesmo o protagonista de
"Amor para Sempre". E também
ambos têm a idéia de que o cérebro é a única fonte de consciência
do homem e vêem essa racionalidade ameaçada por uma situação
aparentemente absurda, mas que
representa as desvantagens que a
humanidade enfrenta hoje.
Folha - O velho confronto entre
razão e sentimento está entre suas
preocupações como escritor?
McEwan - O problema que enfrento é o de que muita gente pensa que racionalidade tem algo a
ver com o oposto do amor. E essa
é uma idéia maluca, nascida no
início do século 19 e ainda não superada. Você pode ser racional e
se encontrar numa situação selvagem de erotismo e de amor. Não
tento mostrar uma oposição, mas
sim um homem que prefere ser
racional a não sê-lo. E que é capaz
de amar e de enfrentar algo aparentemente irracional.
Folha - Mas Perowne é descrito
como uma pessoa incapaz de sentir
compaixão. Entretanto, sente-se
tocado pela situação de Baxter.
McEwan - Sim, mas, no geral, ele
é um médico que não sente piedade por seus pacientes. E médicos
geralmente não sentem mesmo.
No final, a situação muda, e ele
sente alguma compaixão por Baxter a ponto de salvar sua vida, pois
percebe que o bandido, por mais
bruto que seja, é capaz de responder com emoção a um poema recitado por sua filha, coisa que ele
mesmo jamais poderia.
Folha - Perowne pensa na morte,
pois se preocupa com o terrorismo,
porque a vê todos os dias no hospital e porque está envelhecendo.
Você quis tratar especificamente
do tema da velhice?
McEwan - Eu queria muito colocar minha própria mãe neste livro, porque ela adoeceu como a
mãe de Perowne, que perde a memória, e morreu durante o período em que estava escrevendo.
Além disso, ao escolher um sábado para o desenrolar da história, pensei na vida como uma semana, e num personagem de 48
anos que se vê às vésperas da velhice, que seria o seu domingo.
Folha - Você diz que é uma condição dos tempos em que vivemos o
fato de estarmos sempre ansiosos
para saber o que está acontecendo
com o mundo. E se pergunta se contribuímos ao tentarmos nos manter atualizados. Contribuímos?
McEwan - Tenho pensado muito
sobre isso porque se tornou um
hábito profundo em mim, principalmente depois do 11 de Setembro. Estamos muito mais interessados em ler jornais, ouvir programas de rádio e TV, e mais angustiados ao não saber como terminou uma determinada história
que aparece nos noticiários.
Mas penso que as pessoas se iludem quando acham que lendo os
jornais de domingo estão participando ativamente do que acontece. Como se ler artigos e opiniões
nos transformassem em jogadores. Na verdade, o que estamos fazendo é apenas consumir, o que
nos torna só mais um tipo de vítima dos fatos.
Folha - O que achou da morte do
brasileiro pela polícia britânica no
metrô de Londres?
McEwan - Foi algo monstruoso.
A polícia, que até então lidava
bem com as conseqüências do
atentado de 7 de julho, tem o dever de investigar o que se passou
de forma transparente, sob a pena
de perder o crédito dos londrinos.
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