São Paulo, sábado, 29 de outubro de 2005

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LITERATURA

Em "Sábado", o escritor inglês vê o mundo pós-11 de Setembro ao descrever 24 horas na vida de um neurocirurgião

McEwan desafia a consciência em um dia

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

Quando viu um estranho corpo em chamas rasgar o céu de Londres da sacada de sua casa, durante uma madrugada de insônia, o neurocirurgião Henri Perowne pressentiu que aquele não seria um sábado como qualquer outro.
"Sábado", o mais recente romance do escritor inglês Ian McEwan, 57, é um livro inspirado nas transformações do mundo pós-11 de Setembro e registra um dia na vida de um médico bem-sucedido, casado e pai de dois jovens artistas (um músico e uma poeta).
Perowne é um homem que acredita ferrenhamente na ciência, trata seus pacientes com distanciamento e desconfia dos desvarios literários e das crenças humanitárias da filha Daisy.
Neste sábado específico, ele tem uma programação rotineira: visitar a mãe doente, jogar squash com um amigo e reunir-se com a família para jantar. Estamos, entretanto, às vésperas da invasão do Iraque pelas tropas americanas e inglesas, num dia em que as ruas de Londres recebem milhares de manifestantes antiguerra.
A caminho do jogo de squash, Perowne sofre um acidente de trânsito em que também está Baxter, um jovem bandido que sofre de grave doença degenerativa. Começa, então, uma perseguição, real e psicológica, em que a irracionalidade de Baxter ameaçará o dia e a consciência de Perowne.
Leia os principais trechos da entrevista que McEwan concedeu à Folha, por telefone, de Londres.

 

Folha - Perowne, que é a favor da invasão do Iraque, faz uma aposta com a filha, que é contra. Ele acha que, três meses depois, os iraquianos viveriam uma situação melhor, enquanto a filha aposta que o país estaria uma bagunça. Ao final, parece que Daisy venceu, não é?
Ian McEwan -
Não, na verdade Daisy perdeu, pois o país virou uma bagunça em apenas dois dias [risos]. Sempre tive sentimentos muito misturados sobre a ação dos EUA e do Reino Unido no Iraque, pois queria ver Saddam deixar o poder, mas tinha dúvidas sobre a guerra. Acho que o erro não foi a invasão, e sim a maneira como se deu a ocupação. Quando escrevi o diálogo entre pai e filha, queria fazer com que ambos estivessem corretos e que sintetizassem o que eu pensava.

Folha - O livro tem semelhanças com "Amor para Sempre". Ambos os protagonistas são homens que crêem na ciência e no sucesso material do Ocidente. E ambos giram em torno de um episódio trágico -o acidente com um balão naquele livro e um incidente de trânsito neste. Há um diálogo entre eles?
McEwan -
Realmente existem paralelos entre esses dois livros. Henri Perowne é o segundo personagem criado por mim a acreditar de forma arraigada na racionalidade e na ciência. O primeiro foi mesmo o protagonista de "Amor para Sempre". E também ambos têm a idéia de que o cérebro é a única fonte de consciência do homem e vêem essa racionalidade ameaçada por uma situação aparentemente absurda, mas que representa as desvantagens que a humanidade enfrenta hoje.

Folha - O velho confronto entre razão e sentimento está entre suas preocupações como escritor?
McEwan -
O problema que enfrento é o de que muita gente pensa que racionalidade tem algo a ver com o oposto do amor. E essa é uma idéia maluca, nascida no início do século 19 e ainda não superada. Você pode ser racional e se encontrar numa situação selvagem de erotismo e de amor. Não tento mostrar uma oposição, mas sim um homem que prefere ser racional a não sê-lo. E que é capaz de amar e de enfrentar algo aparentemente irracional.

Folha - Mas Perowne é descrito como uma pessoa incapaz de sentir compaixão. Entretanto, sente-se tocado pela situação de Baxter.
McEwan -
Sim, mas, no geral, ele é um médico que não sente piedade por seus pacientes. E médicos geralmente não sentem mesmo. No final, a situação muda, e ele sente alguma compaixão por Baxter a ponto de salvar sua vida, pois percebe que o bandido, por mais bruto que seja, é capaz de responder com emoção a um poema recitado por sua filha, coisa que ele mesmo jamais poderia.

Folha - Perowne pensa na morte, pois se preocupa com o terrorismo, porque a vê todos os dias no hospital e porque está envelhecendo. Você quis tratar especificamente do tema da velhice?
McEwan -
Eu queria muito colocar minha própria mãe neste livro, porque ela adoeceu como a mãe de Perowne, que perde a memória, e morreu durante o período em que estava escrevendo.
Além disso, ao escolher um sábado para o desenrolar da história, pensei na vida como uma semana, e num personagem de 48 anos que se vê às vésperas da velhice, que seria o seu domingo.

Folha - Você diz que é uma condição dos tempos em que vivemos o fato de estarmos sempre ansiosos para saber o que está acontecendo com o mundo. E se pergunta se contribuímos ao tentarmos nos manter atualizados. Contribuímos?
McEwan -
Tenho pensado muito sobre isso porque se tornou um hábito profundo em mim, principalmente depois do 11 de Setembro. Estamos muito mais interessados em ler jornais, ouvir programas de rádio e TV, e mais angustiados ao não saber como terminou uma determinada história que aparece nos noticiários.
Mas penso que as pessoas se iludem quando acham que lendo os jornais de domingo estão participando ativamente do que acontece. Como se ler artigos e opiniões nos transformassem em jogadores. Na verdade, o que estamos fazendo é apenas consumir, o que nos torna só mais um tipo de vítima dos fatos.

Folha - O que achou da morte do brasileiro pela polícia britânica no metrô de Londres?
McEwan -
Foi algo monstruoso. A polícia, que até então lidava bem com as conseqüências do atentado de 7 de julho, tem o dever de investigar o que se passou de forma transparente, sob a pena de perder o crédito dos londrinos.


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