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ARTIGO
Para pensar o problema da fome
da Reportagem Local
O Sesc (Serviço Social do Comércio) promove hoje, às 20h, o
debate "Alimentação - Direito
Fundamental do Cidadão".
O crítico literário Antonio Candido, 81, que não poderá estar
presente, gravou um depoimento
e escreveu um texto, intitulado
"Alguns Tópicos para Reflexão",
sobre a questão, que a Folha publica abaixo, com exclusividade.
ANTONIO CANDIDO
Creio que o Sesc já reuniu um
acervo importante de observações sobre o problema da carência alimentar e social, como se pode ver, entre outras publicações,
pelas contribuições reunidas nos
dois volumes intitulados "O Desafio Social da Fome". Essa obra
denota a ocorrência de um fato
novo e muito auspicioso, que é a
participação nascente do empresariado na luta contra a miséria e
a marginalização social.
Isso posto, seria pretensioso de
minha parte querer sugerir idéias
a quem se revela bem aparelhado
para enfrentar o problema nos limites da esfera privada. Portanto,
o que segue é simples manifestação de boa vontade e espírito de
colaboração.
1. Um dos traços mais positivos
do nosso tempo é o que se pode
denominar "consciência da fome", isto é, a convicção mais ou
menos generalizada de que há
muita fome no mundo, que boa
parte das populações não pode se
alimentar de maneira conveniente e que isso não é fatalidade ou
castigo (como se pensava antes),
mas fruto de uma organização social insatisfatória, que concentra
renda numa extremidade e priva
a outra dos recursos mínimos.
Essa consciência é um passo à
frente e deve ser o primeiro tópico
de reflexão. É bom, inclusive, lembrar que cerca de algumas dezenas de anos atrás quem dissesse
essas verdades seria taxado de
subversivo e poderia sofrer consequências penosas. Mas hoje, essa
é a linguagem dos governantes,
dos políticos, dos jornalistas, dos
empresários, sem qualquer conotação de tipo radical. Portanto,
trata-se de algo positivo, por ser
convicção generalizada, correspondendo ao que Durkheim denominava "um estado forte da
consciência coletiva", capaz de
gerar mudanças necessárias.
2. Mas é também um perigo,
porque pode transformar a constatação e a denúncia em mera retórica. É curioso verificar como
setores no fundo insensíveis à desigualdade econômica e social em
seus aspectos mais drásticos falam cada vez mais da necessidade
de combatê-la e eliminá-la; e como gente que não tenciona alterar
nada proclama aos quatro ventos
a sua disposição de lutar contra a
pobreza e a desigualdade extrema. Assim, um segundo tópico de
reflexão poderia ser o de avaliar o
que é genuíno e o que é cortina de
fumaça na luta contra a fome e a
miséria.
3. Seria ainda bom refletir um
pouco sobre a posição do Brasil
no panorama da fome universal,
começando por lembrar o nome
de um brasileiro eminente que fez
da fome tema obrigatório nos estudos de sociologia, geografia humana, economia, política, levando outros estudiosos, em outros
países, a enfrentar seriamente o
assunto. Refiro-me a Josué de
Castro, autor de dois livros que se
tornaram clássicos em todo o
mundo e foram traduzidos para
muitas línguas: "Geografia da Fome" (1946) e "Geopolítica da Fome" (1951). Isso lhe valeu fama
universal e altos cargos internacionais no setor de luta contra a
carência alimentar, no entanto,
lamentavelmente, morreu no exílio, cassado pelo regime militar.
Josué de Castro deve ser considerado pioneiro e patrono, porque alertou o mundo, fez todos
abrirem os olhos para uma realidade incômoda que se procurava
evitar. Quem tem a minha idade,
ou pouco menos, ainda lembra
que nas escolas dos anos 20, 30 e
40 a palavra de ordem era apresentar o nosso país como terra
prometida, onde havia o necessário para todos e ninguém morria à
míngua. Homens como Josué de
Castro trouxeram à tona a triste
realidade e levaram as concepções
educacionais a serem mais realistas, porque ficou impossível esconder aos jovens a triste verdade.
Ora, sem o conhecimento da
verdade não se muda nada; por isso eu diria que um terceiro objeto
de reflexão deve ser o esforço necessário para reeducar todo o povo, mas sobretudo as camadas
dominantes, que têm o poder decisório, fazendo ver que somos
um país muito desigual, encharcado de iniquidade, onde há setores bem-sucedidos e outros que
nos situam, lamentavelmente, na
retaguarda dos povos civilizados.
Basta consultar as estatísticas
alarmantes sobre as nossas deficiências no terreno social.
4. O sociólogo e reformador
francês padre Louis Joseph Lebret, que foi tão ligado ao Brasil e
aqui trabalhou liderando o movimento "Economia e Humanismo" (e que, seja dito de passagem,
sofreu a influência das idéias de
Josué de Castro), tinha como um
dos lemas: "É preciso criar a
abundância".
Ele chamava a atenção para o fato de serem as proteínas quase um
privilégio, que diferençava os países pobres dos países ricos, de
maneira que o mundo tinha de fazer um esforço sobre-humano para aumentar a produção de alimentos, seguido de outro esforço
(talvez mais difícil, porque dependia de uma revolução das mentalidades) para torná-los acessíveis
a todos. Daí ter definido o conjunto das suas teorias como "economia humana", isto é, uma economia segundo a qual o lucro não
apagasse o sentimento de solidariedade, mas solidariedade a fundo, importando em fraternidade e
desprendimento, na luta contra a
fome. Papel tanto mais importante quanto, ao contrário do que se
pensava, o progresso técnico tem
agravado, não melhorando, a desigualdade entre os povos e a falta
de alimentos. Sem uma concepção humana, o progresso material
se torna fator de injustiça e miséria, entregando o mais fraco ao
mais forte, na escala dos países e
na escala dos grupos.
5. O quinto tema de reflexão poderia ser o da relação entre público e privado na luta contra a carência e a fome, pois dela depende
a relação entre a iniciativa empresarial e o Estado, que deve ser redefinida em nossos dias.
Na civilização do Ocidente, que
é a nossa, o pobre contava antigamente apenas com a caridade;
portanto, dependia da disposição
e da boa vontade de pessoas e instituições, a principal das quais era
a Igreja Católica, e mais tarde
também as reformadas. Isso queria dizer que o pobre não tinha direitos, mas dependia da boa disposição humanitária dos outros.
Com a formação do Estado moderno e seu triunfo a partir do século 17, foi crescendo lentamente
a idéia de cidadania e, após ela, a
de direitos políticos do cidadão,
proclamados pela primeira vez
oficialmente pela Revolução
Americana de 1776 e pela Revolução Francesa de 1789. Ora, no correr do tempo e das lutas sociais,
foi ficando cada vez mais claro
que, além dos direitos políticos,
havia o direito elementar à sobrevivência física, que custou a ser
admitido nas democracias meramente formais, que predominam.
Ora, esse direito é ameaçado, no
limite, pela fome. Daí o Estado ter
assumido aos poucos várias modalidades de assistência que antes
inexistiam ou dependiam da boa
vontade privada, isto é, não eram
direitos, mas dívidas.
Essa realidade suscita uma
questão delicada: a das relações,
em nossos dias da empresa privada com o Estado, pressupostas no
segundo plano de iniciativas como as do Sesc. Nos países do Primeiro Mundo o problema é diferente, porque a repartição dos
bens é menos desigual e porque a
capacidade de pressão das classes
subalternas é maior.
Por isso, o Estado pode alocar
somas consideráveis nos setores
de previdência e assistência e a
empresa privada é coagida a aplicar parte dos lucros para o mesmo fim. Mas, nos países emergentes, podem haver situações complicadas, na medida em que o Estado desvia somas destinadas
àqueles fins para atender a outras
obrigações; e na medida em que a
empresa privada se encontra frequentemente em falta com relação a suas obrigações de mesma
finalidade. Isso pode gerar como
reação pressões mal dirigidas ou
pouco eficazes das camadas subalternas e relações difíceis entre
Estado e empresa. Por isso, tais relações devem ser objeto de uma
reflexão que eu não saberia encaminhar, por absoluta falta de
competência.
Convém notar, todavia, que em
nosso tempo o Estado brasileiro
assumiu uma série de encargos
sociais com os quais dificilmente
é capaz de arcar, mas que criaram
na população expectativas que
não podem deixar de ser atendidas. Daí a importância crescente
dos organismos não-governamentais e a consciência também
crescente do senso de responsabilidade de alguns setores das classes dominantes. A partir daí é
possível prever que haverá dentro
de algum tempo uma modificação profunda nas relações entre a
esfera pública e a privada, contanto que a primeira saiba limitar as
suas atribuições e a segunda assuma consciência da sua responsabilidade social. Isso permitiria
evitar o estatismo, de um lado, o
egoísmo capitalista, de outro, favorecendo uma espécie de responsabilidade partilhada, que talvez venha a ser uma das tônicas
das próximas décadas. Pelo menos é um caminho possível para
tentar soluções diferentes das que
fracassaram no século 20.
Esse quinto tópico de reflexão
sugere o desenvolvimento de uma
mentalidade cooperativa e solidária que, quem sabe, conseguirá
atenuar os efeitos do nosso egoísmo, redimido periodicamente pelo trabalho dos homens de boa
vontade. É impossível prever o
que acontecerá a partir de agora,
pois estamos provavelmente entrando numa era de transformações tão drásticas quanto as que
começaram com o fim do Império Romano, no século 5, ou no
Renascimento, no século 15. Mas
é certo que, se quisermos humanizar a sociedade, teremos de fazer esforços gigantescos para limitar a exploração do homem pelo homem, distribuir melhor os
bens, equilibrar interesse público
e interesse privado.
Como não tenho conhecimentos específicos para discutir os
problemas ligados de maneira direta à fome e à carência, preferi,
como se viu, sugerir reflexões periféricas, que considero todavia
necessárias para complementar
as discussões técnicas, pois em
torno do problema central há aspectos históricos, sociais, políticos que devem ser levados em
conta.
Antonio Candido, 81, crítico literário, é professor emérito da USP, autor de "Formação
da Literatura Brasileira"
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