São Paulo, Segunda-feira, 29 de Novembro de 1999


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ARTIGO
Para pensar o problema da fome

da Reportagem Local


O Sesc (Serviço Social do Comércio) promove hoje, às 20h, o debate "Alimentação - Direito Fundamental do Cidadão".
O crítico literário Antonio Candido, 81, que não poderá estar presente, gravou um depoimento e escreveu um texto, intitulado "Alguns Tópicos para Reflexão", sobre a questão, que a Folha publica abaixo, com exclusividade.

ANTONIO CANDIDO

Creio que o Sesc já reuniu um acervo importante de observações sobre o problema da carência alimentar e social, como se pode ver, entre outras publicações, pelas contribuições reunidas nos dois volumes intitulados "O Desafio Social da Fome". Essa obra denota a ocorrência de um fato novo e muito auspicioso, que é a participação nascente do empresariado na luta contra a miséria e a marginalização social.
Isso posto, seria pretensioso de minha parte querer sugerir idéias a quem se revela bem aparelhado para enfrentar o problema nos limites da esfera privada. Portanto, o que segue é simples manifestação de boa vontade e espírito de colaboração.
1. Um dos traços mais positivos do nosso tempo é o que se pode denominar "consciência da fome", isto é, a convicção mais ou menos generalizada de que há muita fome no mundo, que boa parte das populações não pode se alimentar de maneira conveniente e que isso não é fatalidade ou castigo (como se pensava antes), mas fruto de uma organização social insatisfatória, que concentra renda numa extremidade e priva a outra dos recursos mínimos.
Essa consciência é um passo à frente e deve ser o primeiro tópico de reflexão. É bom, inclusive, lembrar que cerca de algumas dezenas de anos atrás quem dissesse essas verdades seria taxado de subversivo e poderia sofrer consequências penosas. Mas hoje, essa é a linguagem dos governantes, dos políticos, dos jornalistas, dos empresários, sem qualquer conotação de tipo radical. Portanto, trata-se de algo positivo, por ser convicção generalizada, correspondendo ao que Durkheim denominava "um estado forte da consciência coletiva", capaz de gerar mudanças necessárias.
2. Mas é também um perigo, porque pode transformar a constatação e a denúncia em mera retórica. É curioso verificar como setores no fundo insensíveis à desigualdade econômica e social em seus aspectos mais drásticos falam cada vez mais da necessidade de combatê-la e eliminá-la; e como gente que não tenciona alterar nada proclama aos quatro ventos a sua disposição de lutar contra a pobreza e a desigualdade extrema. Assim, um segundo tópico de reflexão poderia ser o de avaliar o que é genuíno e o que é cortina de fumaça na luta contra a fome e a miséria.
3. Seria ainda bom refletir um pouco sobre a posição do Brasil no panorama da fome universal, começando por lembrar o nome de um brasileiro eminente que fez da fome tema obrigatório nos estudos de sociologia, geografia humana, economia, política, levando outros estudiosos, em outros países, a enfrentar seriamente o assunto. Refiro-me a Josué de Castro, autor de dois livros que se tornaram clássicos em todo o mundo e foram traduzidos para muitas línguas: "Geografia da Fome" (1946) e "Geopolítica da Fome" (1951). Isso lhe valeu fama universal e altos cargos internacionais no setor de luta contra a carência alimentar, no entanto, lamentavelmente, morreu no exílio, cassado pelo regime militar.
Josué de Castro deve ser considerado pioneiro e patrono, porque alertou o mundo, fez todos abrirem os olhos para uma realidade incômoda que se procurava evitar. Quem tem a minha idade, ou pouco menos, ainda lembra que nas escolas dos anos 20, 30 e 40 a palavra de ordem era apresentar o nosso país como terra prometida, onde havia o necessário para todos e ninguém morria à míngua. Homens como Josué de Castro trouxeram à tona a triste realidade e levaram as concepções educacionais a serem mais realistas, porque ficou impossível esconder aos jovens a triste verdade.
Ora, sem o conhecimento da verdade não se muda nada; por isso eu diria que um terceiro objeto de reflexão deve ser o esforço necessário para reeducar todo o povo, mas sobretudo as camadas dominantes, que têm o poder decisório, fazendo ver que somos um país muito desigual, encharcado de iniquidade, onde há setores bem-sucedidos e outros que nos situam, lamentavelmente, na retaguarda dos povos civilizados. Basta consultar as estatísticas alarmantes sobre as nossas deficiências no terreno social.
4. O sociólogo e reformador francês padre Louis Joseph Lebret, que foi tão ligado ao Brasil e aqui trabalhou liderando o movimento "Economia e Humanismo" (e que, seja dito de passagem, sofreu a influência das idéias de Josué de Castro), tinha como um dos lemas: "É preciso criar a abundância".
Ele chamava a atenção para o fato de serem as proteínas quase um privilégio, que diferençava os países pobres dos países ricos, de maneira que o mundo tinha de fazer um esforço sobre-humano para aumentar a produção de alimentos, seguido de outro esforço (talvez mais difícil, porque dependia de uma revolução das mentalidades) para torná-los acessíveis a todos. Daí ter definido o conjunto das suas teorias como "economia humana", isto é, uma economia segundo a qual o lucro não apagasse o sentimento de solidariedade, mas solidariedade a fundo, importando em fraternidade e desprendimento, na luta contra a fome. Papel tanto mais importante quanto, ao contrário do que se pensava, o progresso técnico tem agravado, não melhorando, a desigualdade entre os povos e a falta de alimentos. Sem uma concepção humana, o progresso material se torna fator de injustiça e miséria, entregando o mais fraco ao mais forte, na escala dos países e na escala dos grupos.
5. O quinto tema de reflexão poderia ser o da relação entre público e privado na luta contra a carência e a fome, pois dela depende a relação entre a iniciativa empresarial e o Estado, que deve ser redefinida em nossos dias.
Na civilização do Ocidente, que é a nossa, o pobre contava antigamente apenas com a caridade; portanto, dependia da disposição e da boa vontade de pessoas e instituições, a principal das quais era a Igreja Católica, e mais tarde também as reformadas. Isso queria dizer que o pobre não tinha direitos, mas dependia da boa disposição humanitária dos outros.
Com a formação do Estado moderno e seu triunfo a partir do século 17, foi crescendo lentamente a idéia de cidadania e, após ela, a de direitos políticos do cidadão, proclamados pela primeira vez oficialmente pela Revolução Americana de 1776 e pela Revolução Francesa de 1789. Ora, no correr do tempo e das lutas sociais, foi ficando cada vez mais claro que, além dos direitos políticos, havia o direito elementar à sobrevivência física, que custou a ser admitido nas democracias meramente formais, que predominam.
Ora, esse direito é ameaçado, no limite, pela fome. Daí o Estado ter assumido aos poucos várias modalidades de assistência que antes inexistiam ou dependiam da boa vontade privada, isto é, não eram direitos, mas dívidas.
Essa realidade suscita uma questão delicada: a das relações, em nossos dias da empresa privada com o Estado, pressupostas no segundo plano de iniciativas como as do Sesc. Nos países do Primeiro Mundo o problema é diferente, porque a repartição dos bens é menos desigual e porque a capacidade de pressão das classes subalternas é maior.
Por isso, o Estado pode alocar somas consideráveis nos setores de previdência e assistência e a empresa privada é coagida a aplicar parte dos lucros para o mesmo fim. Mas, nos países emergentes, podem haver situações complicadas, na medida em que o Estado desvia somas destinadas àqueles fins para atender a outras obrigações; e na medida em que a empresa privada se encontra frequentemente em falta com relação a suas obrigações de mesma finalidade. Isso pode gerar como reação pressões mal dirigidas ou pouco eficazes das camadas subalternas e relações difíceis entre Estado e empresa. Por isso, tais relações devem ser objeto de uma reflexão que eu não saberia encaminhar, por absoluta falta de competência.
Convém notar, todavia, que em nosso tempo o Estado brasileiro assumiu uma série de encargos sociais com os quais dificilmente é capaz de arcar, mas que criaram na população expectativas que não podem deixar de ser atendidas. Daí a importância crescente dos organismos não-governamentais e a consciência também crescente do senso de responsabilidade de alguns setores das classes dominantes. A partir daí é possível prever que haverá dentro de algum tempo uma modificação profunda nas relações entre a esfera pública e a privada, contanto que a primeira saiba limitar as suas atribuições e a segunda assuma consciência da sua responsabilidade social. Isso permitiria evitar o estatismo, de um lado, o egoísmo capitalista, de outro, favorecendo uma espécie de responsabilidade partilhada, que talvez venha a ser uma das tônicas das próximas décadas. Pelo menos é um caminho possível para tentar soluções diferentes das que fracassaram no século 20.
Esse quinto tópico de reflexão sugere o desenvolvimento de uma mentalidade cooperativa e solidária que, quem sabe, conseguirá atenuar os efeitos do nosso egoísmo, redimido periodicamente pelo trabalho dos homens de boa vontade. É impossível prever o que acontecerá a partir de agora, pois estamos provavelmente entrando numa era de transformações tão drásticas quanto as que começaram com o fim do Império Romano, no século 5, ou no Renascimento, no século 15. Mas é certo que, se quisermos humanizar a sociedade, teremos de fazer esforços gigantescos para limitar a exploração do homem pelo homem, distribuir melhor os bens, equilibrar interesse público e interesse privado.
Como não tenho conhecimentos específicos para discutir os problemas ligados de maneira direta à fome e à carência, preferi, como se viu, sugerir reflexões periféricas, que considero todavia necessárias para complementar as discussões técnicas, pois em torno do problema central há aspectos históricos, sociais, políticos que devem ser levados em conta.


Antonio Candido, 81, crítico literário, é professor emérito da USP, autor de "Formação da Literatura Brasileira"


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