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biblioteca Folha
Obra-prima onírica do escritor vienense, publicada em 1926, inspirou Stanley Kubrick em seu último filme
Schnitzler dilata os olhos dos sonhos
DA REPORTAGEM LOCAL
Arthur Schnitzler é um desses
escritores que têm o infortúnio de
levar para todo o sempre um
grande nome como "escolta". É
quase impossível ler algo sobre
esse grande autor austríaco que
contorne o nome Sigmund Freud.
Assim como o pai da psicanálise, o dramaturgo e romancista
nasceu na metade do século 19, no
Império Austro-Húngaro. Assim
como ele, viveu a elegante Viena
do início do século 20.
A dupla começou igualmente
na medicina, e depois seguiu o caminho dos livros. Mas o elo mais
forte desses dois, que se conheceram e se admiraram, foi que, antes de morrer, ambos nos anos 30,
tanto Freud quanto Schnitzler
deixaram contribuições fundamentais para a compreensão dos
mecanismos psíquicos do desejo.
O melhor documento que o escritor deixou disso talvez seja a
novela "Breve Romance de Sonho", que a Biblioteca Folha leva
amanhã às bancas.
Obra-prima da maturidade de
Schnitzler (1862-1931), o pequeno
romance foi publicado em 1926
-por coincidência, ano do último encontro do ficcionista com o
autor de "A Interpretação dos Sonhos". E saiu com barulho.
Não propriamente um romance
erótico, mas com alta carga de lascívia, o livrinho contava a estranha noite de um médico que se
envolve com orgia secreta, crimes
e prostituição com "menores".
Quase oito décadas mais tarde o
romance parece ter sido escrito na
semana passada, se porventura
alguém ainda escrevesse assim na
semana que passou.
A atualidade de Schnitzler foi
captada pelas antenas inglesas do
dramaturgo David Hare (roteirista de "As Horas"), que se inspirou
nele no sucesso "The Blue
Room", e do cineasta Stanley Kubrick, que encerrou sua brilhante
trajetória adaptando "Breve Romance de Sonho" no filme "De
Olhos Bem Fechados" (1999).
A versão para as telonas do romance de Schnitzler segue o teorema quase imbatível do "o livro é
sempre melhor do que o filme",
mas o trabalho de Kubrick é admirável na transposição para a
película da sensibilidade escura,
lânguida, abismal dessa curta novela onírica.
Onírica, bom que se diga, não
no sentido Salvador Dalí, surreal,
aleatório. O sonho, para o escritor
vienense, parece ser uma argamassa de crueldade, medo, desejos reprimidos (e liberados da jaula) e tempo descompassado (o
protagonista, que no livro temos a
sorte de não ser Tom Cruise, faz o
diabo ao quadrado, e o relógio
não passa das 4 da manhã).
Vale dizer que Schnitzler tinha
conhecimento de causa, no reino
de Eros e Tanatos (deuses do
amor e da morte). Já adolescente,
mergulhava até os ombros nas lamas de Viena.
O historiador emérito Peter Gay
deu vasto destaque a esse ponto,
as experiências eróticas de Schnitzler aos 16 anos, em seu estudo
sem precedentes sobre a burguesia européia do século 19. Um dos
cinco volumes da série "A Experiência Burguesa - Da Rainha Vitória a Freud" se chama "O Século
de Schnitzler: Criação da Cultura
de Classe Média, 1815-1914" (lançado pela Companhia das Letras).
E a reflexão sobre o ambiente burguês é também parte central de
"Breve Romance de Sonho". Seu
ponto de partida é justamente a
crise de um casal bem-sucedido
de meia-idade. O marido Fridolin
sai pela noite em aventuras de infidelidade. Enquanto isso, no
aconchego burguês, sua mulher:
"Albertine permanecia ainda e
sempre de olhos fechados".
Schnitzler, com essa breve novela de sonhos, abre os olhos dela
e os de todos nós.
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