São Paulo, segunda-feira, 29 de novembro de 2004

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ARTES CÊNICAS

Aos 82, Picolino 2º narra em livro trajetória do circo Nerino

Palhaço faz, sem piada, história de seu circo

Pierre Verger/Reprodução de "Circo Nerino"
Imagem feita pelo francês Pierre Verger de uma passagem do circo Nerino por Recife, em 1947, que está no livro "Circo Nerino"


VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Na semana passada, Roger Avanzi repetiu o ritual de mais de meio século. Passou a maquiagem branca, vestiu a camisa de colarinho frouxo e o chapéu-coco e pintou de vermelho seu nariz. Aos 82 anos, ele virou mais uma vez o palhaço Picolino 2º, para alegria de uma platéia de Piracicaba, no interior de São Paulo.
Esta noite também tem marmelada, tem sim senhor. Mas desta vez as estripulias são um bocado diferentes, feitas de papel, caneta e muita memória.
Avanzi autografa hoje, em São Paulo, exemplares do luxuoso livro "Circo Nerino", em que conta, em parceria com a atriz e pesquisadora Verônica Tamaoki, a trajetória de uma das companhias circences mais importantes do país. É uma história que Avanzi conhece trapézio por trapézio, lona por lona, risada por risada. Com 52 anos de atuação, entre 1913 e 1964, o Circo Nerino foi criação de seu pai, que emprestou seu primeiro nome à trupe.
Nerino Avanzi (1886-1962), com quem Roger aprendeu seu ofício (o pai era o Picolino 1º), é um dos personagens centrais do volume, editado pelos selos Códex e Pindorama Circus. Mas a publicação em capa dura, farta em ilustrações, vai muito além das histórias do patriarca dos Picolinos. Dividida em 12 "atos", a obra procura retratar a diversidade de um circo, com suas muitas estrelas, histórias e andanças.
Foram muitos os deslocamentos do circo. De Curitiba, onde foi montado pela primeira vez, até Cruzeiro (SP), onde fez sua última sessão, passou por boa parte da região Sudeste e fez temporadas regulares pelo Norte e Nordeste do país. Essas viagens eram feitas em navios, trens ou caminhões -o "mais querido circo do Brasil", como se proclamava, teve até sua frota de caminhões.
"Circo Nerino" documenta com propriedade também a variedade de interações "multimídia" da companhia dos Avanzi.
Nos anos 30, o Nerino incorporou sessões de cinema, que não foram adiante. Flertou também com o rádio. Mas o romance que mais deu certo foi com o teatro.
O Nerino chegou a desenvolver uma espécie de dramaturgia para picadeiro, culminando com "A Paixão de Cristo", de Eduardo Garrido. "Tínhamos peças para todos os gostos: dramas românticos, sacros, de guerra, de ciganos, de tribunal...", conta a memória afiada de Picolino 2º.
Tamaoki demonstra generosidade em preservar a fala do palhaço durante as entrevistas realizadas desde 1995, quando assumiram o pacto pelo livro. Numa mesma frase, podem conviver harmoniosamente as onomatopéias e um "é, senhoras e senhores", típicos das palhaçadas com as quais Picolino gosta de entremear suas conversas, mesmo quando sob a pele de Avanzi.
A narração em primeira pessoa flui em meio às vozes recolhidas por Tamaoki, quer pessoalmente, com espectadores que freqüentaram o circo, quer nos arquivos dos jornais da época. À parte isso, foram preciosos os álbuns da família e o livro de ouro do Nerino, com depoimentos de autoridades ou de anônimos e imagens. Essa memorabilia visual e escrita faz simbiose o tempo todo com o relato de Avanzi. A produção iconográfica é enriquecida por imagens de Pierre Verger.
Tudo no trabalho testemunha como o Nerino, da mesma forma que os congêneres Arethuzza (1875-1964) e Garcia (1928-2001), mobilizava multidões quando o Brasil ainda não era dominado pelos chuviscos da televisão. Exemplo disso é um abaixo-assinado organizado em Recife, em 1943, pedindo que o "colossal espetáculo" do Nerino tivesse sua temporada prorrogada.
São muitas as passagens cômicas, trágicas -morte de integrantes da companhia durante o trabalho- e heróicas -o carro-tanque do circo ajudou a apagar um incêndio na Bahia, em 1954.
São histórias como a do pai que pediu, no início dos anos 40, em Itabaiana (PB), que deixassem o filho tocar sanfona no intervalo do espetáculo. O pequeno Severino Dias de Oliveira foi ovacionado, como seria muitas vezes depois, já com o codinome Sivuca.
"Circo Nerino" será lançado hoje à noite, no espaço Piolin da galeria Olido, no centro paulistano. Era ali, nos cafés do Largo Paissandu, que os artistas de circo da cidade costumavam se encontrar.
"Vou dar aquele quebra-costela em muita gente", promete Avanzi, sobre os abraços-autógrafos. Palhaço é pouco.

CIRCO NERINO. Autores: Roger Avanzi e Verônica Tamaoki. Editoras: Pindorama Circus e Códex. Quanto: R$ 80 (354 págs.). Lançamento: hoje, às 19h, na galeria Olido (av. São João, 473, SP, tel. 0/xx/11/3334-0001). Patrocinadores: CEF e Petrobras.

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