São Paulo, segunda-feira, 29 de novembro de 2004

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NELSON ASCHER

Fim das aulas

Basta passar os olhos pelas revistas semanais para notar que, nesta época do ano, suas páginas publicitárias se concentram em vender um grande produto: educação, ou melhor, instituições de ensino. Mais que de biquínis e filtros solares, de cruzeiros marítimos ou pacotes turísticos, é de anúncios de escolas e faculdades que elas estão cheias.
Este fato levaria um observador estrangeiro a concluir meia dúzia de coisas relevantes acerca da educação brasileira: por exemplo, a de que existe um mercado e que o papel do Estado, se não nulo, é limitado. Uma vez que o público-alvo das revistas é a classe média e, sabendo-se que a maioria da população se encontra fora (abaixo) de seu âmbito, pode-se inferir que tal mercado atende sobretudo àquela.
A relativa novidade dessa massa publicitária e o número de fornecedores competindo entre si apontam tanto para um crescimento da classe média como para sua preocupação ostensiva com o futuro. Trata-se, afinal, de uma classe que, embora anseie subir degraus, não ignora quão mais fácil é descê-los. Sua familiaridade com as oscilações econômicas a persuadiu de que, das ações aos imóveis, os investimentos tradicionais são menos seguros do que parecem. Ela sabe também que parte substancial da própria ascensão decorre do conhecimento e que a maneira ideal de preservar sua posição consiste em assegurar aos filhos o acesso a conhecimentos semelhantes.
Que a maioria dos brasileiros esteja excluída dessa dinâmica é uma catástrofe que o observador denunciaria imediatamente. Se fosse europeu, ele recomendaria, como remédio infalível, a intervenção estatal ou, caso fosse americano, incentivos à expansão da classe média. Ambas as soluções têm seus méritos. Um Estado mais empenhado é capaz de providenciar, com certa presteza, recursos para que os excluídos conquistem mobilidade social, enquanto aguardar pelos benefícios da "mão invisível" do mercado, além de arriscado, implica transformações demoradas.
Quase nenhuma sociedade se alfabetizou ou se "numerizou" maciçamente sem um mínimo de "dirigismo" governamental. Os casos mais bem-sucedidos são daquelas que o fizeram a partir da Revolução Industrial e durante o apogeu do nacionalismo clássico, entre meados do século 19 e início do seguinte. Além da mão-de-obra qualificada, seu esforço destinava-se a criar os cidadãos patrióticos das respectivas nações. Daí a centralidade curricular da história e da geografia, e o culto ao domínio da língua materna.
Em países como a França ou Alemanha, escolas, liceus e colégios se dedicavam, por um lado, a apagar as diferenças regionais entre seus alunos e, por outro, a ressaltar as que os distinguiam dos estudantes das nações vizinhas. Não é à toa que muitos dos propagandistas mais entusiásticos da Primeira Guerra Mundial, o conflito nacionalista por excelência, eram professores e que, na década de 1920, os centros de estudo superior se tornaram verdadeiras incubadoras de ideologias chauvinistas.
Convém, portanto, aquilatar à luz dos usos às vezes nocivos a que se prestaram os autênticos sucessos do modelo acima. Não menos preocupante, numa perspectiva longa, foi a edificação de gigantescos aparatos burocráticos voltados inicialmente para a organização e administração dos sistemas educacionais, mas que, com o tempo, se revelaram apegados à autoperpetuação e avessos à mudança. Essas burocracias se tornaram geradoras ou difusoras de um conjunto de idéias que, hoje em dia, subjaz ao modo como entendem seus objetivos. Assim, seu cerne de engenharia social cresceu a ponto de elas se perceberem como a parte indispensável que fornece o roteiro ao todo, um todo sobre o qual projetam suas rotinas corporativistas, antimeritocráticas, anticompetitivas e sua preferência pela igualdade de resultados, não de oportunidades.
As conseqüências nas quais o modelo em questão prevalece incontestado há mais anos, na Europa continental, saltam à vista. Um levantamento realizado pelos chineses das quinhentas melhores universidades do planeta (com ênfase nas disciplinas técnicas e científicas) traz conclusões surpreendentes. Das 20 principais, dezessete estão nos EUA, duas no Reino Unido, uma no Japão e nenhuma no continente europeu. (De resto, a América Latina abriga apenas três das quinhentas, e nenhuma instituição do mundo islâmico, que abarca 1/5 da humanidade, figura na lista.) O problema, porém, nada tem de secreto, e a imprensa dos países desenvolvidos reclama diariamente da queda dos padrões educacionais, de escolas que mal conseguem formar gente que escreva, leia ou faça contas direito.
Malgrado seus inumeráveis azares históricos, uma das sortes do Brasil é a de que não precisa reinventar a roda. As lições, positivas ou negativas, de quem começou antes estão à sua disposição. Ao que tudo indica, o envolvimento estatal na educação básica dos excluídos é incontornável. Este, no entanto, deve ser visto como o que é: um mal necessário cujos desdobramentos cabe manter sob controle. O mais grave residiria na tentação de, em busca de um igualitarismo utópico, abolir o mercado (restrito e defeituoso) que já existe.
Devido a sua trajetória e à existência mesma do mercado, a classe média nacional acumulou, a respeito das opções educacionais, uma experiência empírica que rivaliza com a dos profissionais da área. Seu interesse pessoal no assunto, sua capacidade de avaliar resultados e sua abertura mental, à medida que sejam sistematizados, constituirão o contrapeso a uma burocracia freqüentemente aferrada a doutrinas obsoletas.


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