São Paulo, quarta-feira, 29 de novembro de 2006

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Bábel é o melhor lançamento do ano

Traduzida do russo, reunião de contos "O Exército de Cavalaria" é a grande obra de ficção que faltava chegar ao país

Autor, um intelectual judeu de Odessa, descreve guerra russo-polonesa; sua prosa influenciou e foi elogiada por grandes escritores


NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA

"O Exército de Cavalaria", de Isaac Bábel, a principal entre as obras-primas do século 20 que ainda não haviam sido devidamente oferecidas ao público nacional, chega ao Brasil traduzida diretamente do original russo. Um conjunto de contos curtos ambientados numa das campanhas (a russo-polonesa) que se seguiram à chegada dos bolcheviques ao poder, a coletânea, também intitulada "Cavalaria Vermelha" em outras versões, revolucionou a arte de narrar e influenciou autores tão diferentes como Ernest Hemingway e Jorge Luis Borges.
Os cossacos eram, na Rússia pré-revolucionária, camponeses livres que viviam nas zonas "selvagens" de um império em expansão. Exímios cavaleiros que, enfrentando os nômades da estepe, defendiam as fronteiras, eles se tornaram sinônimo de uma raça orgulhosa, a um tempo bélica e geralmente leal aos czares. Já os judeus, sobretudo urbanos, pouco afeitos à montaria ou à batalha e confinados a certas regiões do país, eram um grupo humilhado, pacífico e indesejável.
O colapso da sociedade russa em 1917 e o estado de guerra que perdurou até os anos 20 criaram situações estranhas.
Uma destas foi testemunhada pelo comissário político de um regimento de cossacos que, deixando suas lealdades tradicionais de lado, lutavam em prol dos bolcheviques. Este comissário, um intelectual judeu de Odessa, registrou suas experiências em contos que, brevíssimos, encapsulam todos os paradoxos desse conflito peculiar e tornam sensíveis o caos e a crueldade de um mundo virado de cabeça para baixo.
Foi esse convívio desconfortável, durante o qual o intelectual teve, inclusive, de provar sua dureza e sangue frio aos guerreiros céticos, que permitiu ao autor entender o mosaico étnico de seu país, talvez até do mundo, e retratar o caráter excepcional de seu tempo.
Cada uma de suas narrativas revela tanto a capacidade de síntese e a perfeição estilística de um poema trabalhado como a imediaticidade impactante de um filme ou documentário. Suas histórias não podem ser descritas nem resumidas, pois narrar um evento qualquer em menos palavras ou com mais precisão do que Bábel fez é praticamente impossível.

Inédita
Por que, então, esta obra publicada há oito décadas só nos chega agora? Os clássicos da modernidade internacional já estão devidamente "canonizados", quer dizer, existe, entre críticos e leitores, um consenso difícil de alterar a respeito de quais são os maiores autores que surgiram e quais as obras-primas que eles escreveram na primeira metade do século 20.
Os principais prosadores e poetas têm lugar garantido não só em compêndios e enciclopédias como nas livrarias reais ou virtuais e estão presentes em currículos escolares. Além disso, quase todos já chegaram, bem traduzidos, ao Brasil. Bábel era a exceção.
Reconhecido e avidamente freqüentado, o russo, vítima dos expurgos stalinistas dos anos 30, é um dos mestres indiscutíveis da prosa moderna, em nada inferior, por exemplo, a Kafka. Como sua coletânea mais famosa é, além da crônica vibrante dos confrontos que avassalaram seu país e vizinhanças, ecoando no resto do mundo, também a narração pessoal que, redigida no centro dos acontecimentos e no calor da hora por uma testemunha ocular privilegiada, alcançou, devido ao caráter lapidar, uma durabilidade comprovada, não deixa de ser lamentável que tenha sido publicada aqui em medíocres traduções indiretas.
Embora Boris Schnaiderman tivesse vertido para o português alguns de seus contos, que, graças à perícia e talento do tradutor, demonstravam a grandeza do autor, suas traduções, dispersas em antologias, serviram para aguçar o apetite de quantos tiveram a sorte de encontrá-las. Tamanha lacuna em nosso repertório foi finalmente reparada por Aurora Fornoni Bernardini, Homero Freitas de Andrade e a editora Cosacnaify através deste volume que, contando ademais com ótimo aparato crítico e informativo, é o melhor livro de ficção lançado no Brasil em 2006.


O EXÉRCITO DE CAVALARIA     
Autor: Isaac Bábel
Tradução: Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 55 (256 págs.)


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