São Paulo, quarta-feira, 29 de novembro de 2006

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MARCELO COELHO

Magreza, "karoshi" e Guinness

A absoluta magreza não é um ideal de beleza, mas, sim, de elegância incorpórea e inatingível

FIQUEI PENALIZADO ao saber da morte por anorexia da modelo brasileira Ana Carolina Reston e acho corretas as iniciativas governamentais para limitar a magreza nas passarelas. Em Madri, as autoridades conseguiram impedir que duas moças à beira da inanição participassem de um desfile.
Medidas desse tipo são capazes de proteger a vida de algumas profissionais da moda. Mas sou um pouco cético quanto à possibilidade de se reverter o atual "padrão de beleza feminina". Lembro-me de um romance policial escrito lá pelos anos 40, não sei se por Leslie Charteris ou Erle Stanley Gardner. Numa praia, o detetive se inquietava com um mistério. A passo rápido, uma jovem bastante robusta, de biquíni, percorria incontáveis vezes a extensão do paraíso mexicano onde o herói, instalado sob um guarda-sol, refrescava-se com doses de gim-tônica.
Cedo ele descobre que a moça estava se exercitando para participar de uma campanha publicitária. A idéia da campanha era contestar a silhueta excessivamente esguia das modelos de então. Isso em 1940...
Tenho a impressão de que a absoluta magreza no mundo da moda não significa um ideal de beleza, ou de atratividade sexual feminina, mas, sim, um ideal de elegância incorpórea e inatingível. As atrizes de maior sucesso, embora magras, nem de longe se assemelham às modelos.
Procura-se transmitir, com esses corpos esqueléticos, o mesmo que se procura com as próprias roupas dos estilistas. Não se trata de roupas que alguém possa usar no dia-a-dia; do mesmo modo, ninguém usa um carro de Fórmula-1 nas ruas de uma cidade. Também esses corpos são "inutilizáveis", impossíveis de entrar em circulação na vida real, e arcabouço frágil demais para abrigar uma alma humana. Muito bem. O raciocínio não impede que dezenas de milhares de jovens estraguem sua saúde procurando justamente o que não podem atingir: uma alma sem corpo, mas agraciada pela mais sobrenatural beleza física.
Sabe-se que a anorexia está ligada a distúrbios de auto-imagem: a pessoa se vê no espelho e não se convence de que está magra, esforçando-se para passar mais fome ainda. Mas é possível que existam outros distúrbios em jogo. Os efeitos do tal "padrão de beleza fashion", na verdade, correspondem a um fenômeno bem mais profundo e generalizado, de que quase todos nós somos vítimas.
Trata-se do "padrão de auto-superação", uma espécie de incapacidade para reconhecer os próprios limites. As atenções se voltam para a anorexia, mas li recentemente sobre outro fenômeno também assustador.
O jornalista Carl Honoré, no seu livro "Devagar: Como um Movimento Mundial Está Desafiando o Culto da Velocidade" (editora Record), fala do "karoshi". A palavra japonesa designa a morte por excesso de trabalho. Foi o que aconteceu com um corretor da Bolsa de Tóquio, Kamei Shuji. Ele trabalhava 90 horas por semana e era visto como um modelo por seus colegas. Passou a trabalhar mais ainda, treinando quem queria imitá-lo. A situação se agravou quando o valor das ações no mercado japonês despencou; ele tinha de recuperar os prejuízos. Morreu de ataque cardíaco, aos 26 anos.
Pode ser coincidência, mas nunca vi tantos jogadores de futebol morrendo do coração como nos últimos anos. A idéia de "superar os limites" é tão presente nas programações esportivas quanto a magreza nos desfiles de moda; com o agravante de ser associada a saúde e bem-estar.
"Você pode": que outra mensagem, se não essa, é veiculada pelos cartões de crédito, enquanto à nossa volta mais e mais pessoas afundam em pesadelos de inadimplência?
Folheio a esmo esse almanaque de curiosidades e horrores que é o Guinness. Até que há muitas coisas interessantes, ou que, pelo menos, não pertencem ao ramo da psicopatologia humana: a Austrália é recordista mundial de roubos, Andorra é líder no consumo de chicletes, o maior aquário do mundo está em Atlanta, e o maior fracasso de bilheteria é "A Ilha da Garganta Cortada".
Mas há o campeão de malabarismo com serra elétrica ligada, o maior construtor de castelos de cartas, o homem que engatinhou 56 quilômetros, o outro que tocou sineta por 28 horas. Não há limites para nada, em especial para a estupidez. São poucos, naturalmente, os que se dedicam a quebrar esse tipo de recorde. Mas todo mundo tem seu recorde particular, os competidores com quem se mede, suas metas de superação. O que é necessário, sem dúvida; o problema é que ninguém sabe quando tem de parar. Esse artigo, pelo menos, fica por aqui.


coelhofsp@uol.com.br

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