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MARCELO COELHO
Magreza, "karoshi" e Guinness
A absoluta magreza não é um ideal de beleza, mas, sim, de elegância incorpórea e inatingível
FIQUEI PENALIZADO ao saber da
morte por anorexia da modelo brasileira Ana Carolina
Reston e acho corretas as iniciativas
governamentais para limitar a magreza nas passarelas. Em Madri, as
autoridades conseguiram impedir
que duas moças à beira da inanição
participassem de um desfile.
Medidas desse tipo são capazes de
proteger a vida de algumas profissionais da moda. Mas sou um pouco
cético quanto à possibilidade de se
reverter o atual "padrão de beleza
feminina". Lembro-me de um romance policial escrito lá pelos anos
40, não sei se por Leslie Charteris ou
Erle Stanley Gardner. Numa praia, o
detetive se inquietava com um mistério. A passo rápido, uma jovem
bastante robusta, de biquíni, percorria incontáveis vezes a extensão do
paraíso mexicano onde o herói, instalado sob um guarda-sol, refrescava-se com doses de gim-tônica.
Cedo ele descobre que a moça estava se exercitando para participar
de uma campanha publicitária. A
idéia da campanha era contestar a
silhueta excessivamente esguia das
modelos de então. Isso em 1940...
Tenho a impressão de que a absoluta magreza no mundo da moda
não significa um ideal de beleza, ou
de atratividade sexual feminina,
mas, sim, um ideal de elegância incorpórea e inatingível. As atrizes de
maior sucesso, embora magras, nem
de longe se assemelham às modelos.
Procura-se transmitir, com esses
corpos esqueléticos, o mesmo que se
procura com as próprias roupas dos
estilistas. Não se trata de roupas que
alguém possa usar no dia-a-dia; do
mesmo modo, ninguém usa um carro de Fórmula-1 nas ruas de uma cidade. Também esses corpos são
"inutilizáveis", impossíveis de entrar em circulação na vida real, e arcabouço frágil demais para abrigar
uma alma humana. Muito bem. O
raciocínio não impede que dezenas
de milhares de jovens estraguem
sua saúde procurando justamente o
que não podem atingir: uma alma
sem corpo, mas agraciada pela mais
sobrenatural beleza física.
Sabe-se que a anorexia está ligada
a distúrbios de auto-imagem: a pessoa se vê no espelho e não se convence de que está magra, esforçando-se
para passar mais fome ainda. Mas é
possível que existam outros distúrbios em jogo. Os efeitos do tal "padrão de beleza fashion", na verdade,
correspondem a um fenômeno bem
mais profundo e generalizado, de
que quase todos nós somos vítimas.
Trata-se do "padrão de auto-superação", uma espécie de incapacidade
para reconhecer os próprios limites.
As atenções se voltam para a anorexia, mas li recentemente sobre outro
fenômeno também assustador.
O jornalista Carl Honoré, no seu
livro "Devagar: Como um Movimento Mundial Está Desafiando o
Culto da Velocidade" (editora Record), fala do "karoshi". A palavra japonesa designa a morte por excesso
de trabalho. Foi o que aconteceu
com um corretor da Bolsa de Tóquio, Kamei Shuji. Ele trabalhava 90
horas por semana e era visto como
um modelo por seus colegas. Passou
a trabalhar mais ainda, treinando
quem queria imitá-lo. A situação se
agravou quando o valor das ações no
mercado japonês despencou; ele tinha de recuperar os prejuízos. Morreu de ataque cardíaco, aos 26 anos.
Pode ser coincidência, mas nunca
vi tantos jogadores de futebol morrendo do coração como nos últimos
anos. A idéia de "superar os limites"
é tão presente nas programações esportivas quanto a magreza nos desfiles de moda; com o agravante de
ser associada a saúde e bem-estar.
"Você pode": que outra mensagem, se não essa, é veiculada pelos
cartões de crédito, enquanto à nossa
volta mais e mais pessoas afundam
em pesadelos de inadimplência?
Folheio a esmo esse almanaque de
curiosidades e horrores que é o
Guinness. Até que há muitas coisas
interessantes, ou que, pelo menos,
não pertencem ao ramo da psicopatologia humana: a Austrália é recordista mundial de roubos, Andorra é
líder no consumo de chicletes, o
maior aquário do mundo está em
Atlanta, e o maior fracasso de bilheteria é "A Ilha da Garganta Cortada".
Mas há o campeão de malabarismo com serra elétrica ligada, o
maior construtor de castelos de cartas, o homem que engatinhou 56
quilômetros, o outro que tocou sineta por 28 horas. Não há limites para
nada, em especial para a estupidez.
São poucos, naturalmente, os que
se dedicam a quebrar esse tipo de recorde. Mas todo mundo tem seu recorde particular, os competidores
com quem se mede, suas metas de
superação. O que é necessário, sem
dúvida; o problema é que ninguém
sabe quando tem de parar. Esse artigo, pelo menos, fica por aqui.
coelhofsp@uol.com.br
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