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Sexo em família
Álbum vencedor do Prêmio Eisner-07, principal do mundo das HQs, narra relação de lésbica com
o pai, gay enrustido
EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL
O enredo do álbum de quadrinhos "Fun Home" (lar da diversão), que acaba de sair no
Brasil, soa como o da série de
TV "A Sete Palmos": uma família "disfuncional", espécie de "A
Família Addams" com filho
gay, vive dentro de uma casa
que funciona como funerária.
Mas o livro autobiográfico da
quadrinista norte-americana
Alison Bechdel, 47, vencedor
do Eisner Award de Não-Ficção 2007, o mais importante
das HQs, é mais insólito.
"Fun Home" (o nome também é um jogo de palavra com
funeral home, casa funerária
em inglês) redesenha a relação
de Alison, lésbica, com o pai,
Bruce, um homossexual enrustido, que vive numa cidade provinciana. Bruce ora sublima
seu desejo (e afetação) na decoração quase museológica da
mórbida casa. Ora realiza-o,
nos caracóis do musculoso Roy,
o baby-sitter de seus filhos.
A barra às vezes pesa, mas
Bechdel colore sua narrativa,
cheia de flashbacks e em parte
baseada nos obsessivos diários
que escreveu na infância e adolescência, com diversos alívios
cômicos. "Uma das partes mais
engraçadas do livro é a cena em
que meu pai tenta me levar a
um bar gay e o leão-de-chácara
nos barra porque eu sou menor. É uma situação absurda e
também um tanto trágica. O
humor e a tristeza estão sempre entrelaçados para mim. Daí
o subtítulo "uma tragicomédia
em família'", escreve a quadrinista à Folha, por e-mail.
Bechdel diz que sua família
se divertia muito. Não apesar
da disfunção, da anormalidade,
mas "somada a ela, em paralelo". "Acho que o título do livro
demonstra muito bem o estilo
de humor levemente tolo e
mórbido da minha família. Nós
realmente nos referíamos à
nossa casa funerária como o
"lar da diversão'", diz Bechdel.
Coadjuvante
Os Bechdel, no entanto,
acharam que a moça estava louca quando resolveu esquadrinhar os bastidores de seu lar. A
mãe chegou a sugerir que ela fizesse algo fictício. Mas a quadrinista não abriu mão até de
dar nome aos bois. No livro,
Bechdel recorda como, pouco
depois de revelar à família que
era gay, recebeu um telefonema em que sua mãe disparou: o
pai teve casos com homens.
Perplexa, sua personagem pondera: "Eu fora eclipsada, rebaixada de protagonista do meu
drama pessoal a alívio cômico
da tragédia dos meus pais".
Nem mesmo as suspeitas circunstâncias em que seu pai
morre, aos 44 anos, atropelado
por um caminhão, saem a salvo
do humor peculiar de Bechdel.
No funeral de Bruce em "Fun
Home", um senhor tenta consolá-la, dizendo que "a vontade
divina às vezes é um mistério".
Como paira a suspeita do suicídio, Bechdel pensa em responder: "Não é nenhum mistério!
Ele se matou porque era um
veado maníaco-depressivo no
armário que não agüentou mais
um segundo nessa cidade pequena de gente obtusa".
Sexo
A Alison saindo do armário
se surpreende com afirmações
de lésbicas iniciadas, na linha
"feminismo é a teoria, lesbianismo é a prática", e acaba se
envolvendo com Joan, uma
poeta "matriarquista". Salvo
uma ou outra página com pele e
pêlo à vista, a quadrinista é econômica nas "cenas eróticas".
Diz que sua vida não foi "nenhuma orgia ininterrupta". E
que a proporção das passagens
sexuais explícitas, em relação
às outras, é representativa da
maioria da vida das pessoas.
"Sexo é importante, certamente, mas passamos muito mais
tempo fazendo outras coisas."
A estrutura de "Fun Home" é
quase uma homenagem ao berço literário, e não à toa recheado de referências gays, de Bechdel. Ambos professores de inglês, seus pais aparecem no livro lendo um monte de clássicos da literatura. Os capítulos
aludem a obras de Oscar Wilde
("O Marido Ideal"), Marcel
Proust ("À Sombra das Raparigas em Flor"), Albert Camus
("A Morte Feliz") etc.
E Alison até costura histórias
pessoais daqueles autores, como a de Oscar Wilde, com a do
pai. Tal qual o escritor britânico, Bruce vai parar num tribunal por conta de uma conduta
criminosa com um menor de
idade. Bechdel diz que demorou para se dar conta, no entanto, de que os livros estavam formando a estrutura do álbum.
"Eu estava tentando escrever
sobre o meu pai, mas não sabia
muito sobre ele. Filhos têm
uma perspectiva distorcida dos
seus pais. A proximidade atrapalha que se enxergue claramente. Então comecei a buscar
pistas da personalidade do meu
pai nestes livros que ele amava.
E aos poucos eles começaram a
rastejar para dentro da minha
história", diz Bechdel.
"Primeiro, como citações.
Mas aí comecei a encontrar paralelos nas vidas dos autores e,
por fim, num certo ponto, percebi que estava construindo cada capítulo em torno de um
certo livro ou autor."
Bechdel não se livrou de psicanalismos de botequim. Justamente porque seus pais eram
apaixonados por literatura, ela
diz que passou quase toda a vida adulta negando ser escritora. Até optar pelos quadrinhos,
que eram "um meio de expressão inferior". "E, mais importante, um meio para o qual
meus pais não tinham critérios
estéticos. Por isso, eles não podiam me julgar. É um pouco
irônico que os quadrinhos estejam finalmente sendo levados a
sério, pois é justamente sua natureza não-literária, popular,
que inicialmente me atraiu."
FUN HOME - UMA TRAGICOMÉDIA EM FAMÍLIA
Autora: Alison Bechdel
Tradução: André Conti
Editora: Conrad
Quanto: R$ 42,90 (234 págs.)
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