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CONTARDO CALLIGARIS
Ilhas desconhecidas
O amor e a viagem nos fazem descobrir que há algo, em nós, que não conhecíamos até então
QUANDO ERA criança, um senhor canadense, Mr. Evans,
foi contratado por meus pais
para "treinar" meu inglês. O método
de Mr. Evans consistia em narrar
grandes eventos da História (com H
maiúsculo) como se ele tivesse sido
uma testemunha ocular. Conseqüência: há detalhes íntimos de várias cenas famosas que não sei mais
se são fatos ou fantasias de Mr.
Evans.
Uma fonte de inspiração de Mr.
Evans era a expedição de Lewis e
Clark, que, entre 1804 e 1806, abriu o
caminho do Oeste americano. Segundo Mr. Evans, em 7 de abril de
1805, deixando Fort Mandan para se
aventurar no território desconhecido das grandes planícies, Lewis,
pensativo, teria dito a George Gibson (o melhor atirador da expedição): "New land, George" (uma nova
terra, George).
Nunca pude confirmar a veracidade da dita conversa. Mas essa frase,
aparentemente trivial, foi incorporada no meu léxico familiar. A cada
vez que, numa viagem de férias, saíamos do país, meu irmão e eu não parávamos de repetir: "New land,
George". Ainda hoje, quando chego
num lugar desconhecido, penso em
Lewis e Gibson.
Mais tarde, meu irmão e eu passamos a usar a mesma expressão
quando - numa festa, por exemplo
- avistávamos mulheres que despertavam nosso interesse. Um dos
dois, invariavelmente, levantava a
mão espalmada, como se quisesse
proteger os olhos do sol, e dizia:
"New land, George".
Na literatura, não é raro que um
corpo amado e desejado seja comparado à paisagem de terras incógnitas. John Donne, num de seus mais
lindos poemas (do século 17), chamou sua amada de "minha América,
minha terra recém-descoberta". De
fato, há mesmo uma relação entre o
amor e a verdadeira viagem. Vamos
ver qual.
De vez em quando, tenho vontade
de viajar. O que chamo de viajar não
tem muito a ver com viagens de férias. Tampouco significa necessariamente desbravar terras virgens.
Encontrei a melhor definição do
que é viajar numa maravilhosa e
breve fábula de José Saramago, que
acaba de ser publicada, "O Conto da
Ilha Desconhecida" (Companhia
das Letras). O protagonista explica
assim seu desejo: "Quero encontrar
a ilha desconhecida. Quero saber
quem eu sou quando nela estiver".
Viajar é isto: deslocar-se para um
lugar onde possamos descobrir que
há, em nós, algo que não conhecíamos até então.
Sem estragar o prazer dos leitores,
só direi que, no fim da fábula de Saramago, talvez o protagonista não
encontre sua ilha, mas ele encontra
uma mulher. A moral da história é
incerta, entre duas leituras opostas.
Primeira leitura: quem casa não
viaja (a não ser de férias); casar-se é
desistir de viajar. É o que pensam,
com freqüência, homens e mulheres
casados. E é também o que os leva, às
vezes, a se separarem. Quando achamos que o outro nos impede de viajar, ou seja, que ele nos priva da
aventura de descobrir o que poderia
haver de diferente em nós, o casal se
torna nosso inimigo. Claro, na maioria dos casos, acusamos o casal de
uma inércia que é só nossa.
Exemplo: anos atrás, na França,
um amigo se interessava pelas pessoas que desaparecem sem razão
aparente e refazem sua vida alhures,
sob outro nome, como se tivessem
sido vítimas de uma amnésia repentina. Em todos os casos em que meu
amigo conseguira entrevistar esses
"desaparecidos", os mesmos constatavam que, depois de seu sumiço,
em poucos anos, eles tinham reconstruído uma situação de vida parecida com aquela que tinha motivado sua fuga.
Segunda leitura: o protagonista
descobre que a mulher ao seu lado é
a própria ilha desconhecida que ele
procurava e que a verdadeira viagem
é o encontro com um outro amado.
Faz todo sentido, pois o amor e a
viagem, em princípio, têm isto em
comum: ambos nos fazem descobrir
em nós algo que não estava lá antes.
O outro amado nos transforma.
Tanto quanto a chegada numa terra
incógnita, ele nos revela algo inesperado em nós.
Por isso, aliás, o viajante e o amante podem esbarrar em problemas
análogos: às vezes, ao sermos transformados pela viagem ou pelo amor,
não gostamos do que encontramos,
não gostamos dos efeitos em nós do
amor ou da viagem. Essa é, em geral,
a única razão séria para se separar
ou para voltar da viagem.
Moral dessa coluna (e talvez da fábula de Saramago): os outros não
são nenhum inferno, são uma viagem. Agora, para amar, como para
viajar, é preciso ter determinação e
coragem.
ccalligari@uol.com.br
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