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LIVROS
Em "Galiléia", autor usa Bíblia para contar história no sertão
Ronaldo Correia de Brito consegue narrativa de densidade e precisão
Romance é estréia de contista, cronista e dramaturgo no gênero; livro foge de regionalismos ao se fincar no presente e na globalização
VIVIEN LANDO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Na Galiléia original, nasceram Jesus e os apóstolos, com exceção de
Judas Escariotes, natural da
Judéia. Das tantas cidades da
região, inclusa Nazaré, foram
poucos os habitantes que acreditaram nos milagres, na Ressurreição ou mesmo na existência do Cristo.
Já na Galiléia do escritor Ronaldo Correia de Brito, uma antiqüíssima fazenda encravada
no sertão dos Inhamuns, Ceará,
a família Rego Castro prefere
crer no que não vê, dialogar
com os mortos, ocultar os estupros, esconder os assassinos e
cultuar o adultério e conseqüentes bastardos.
Originários da mistura entre
portugueses judeus e cristãos
novos, índios de duas tribos e
negros, quase todos do clã possuem nomes tirados da História Sagrada, na qual o Velho e o
Novo Testamento convivem
em alternância. E ainda usufruem da licença poética do autor, que atribui a uns o nome e a
outros a lenda, como é o caso de
Esaú e Jacó, cuja história do gêmeo bíblico predileto da mãe
recai sobre outro parente.
Em sua estréia em romance,
vindo de longa carreira como
contista, cronista e dramaturgo, esse cearense de 58 anos recorta a Bíblia em um quebra-cabeça de novo encaixe -com
muita habilidade e, sobretudo,
intimidade, já que algumas personagens o acompanham em
origem e trajetória: nascimento no sertão, passagem pelo Cariri, formação médica no Reino
Unido e mudança para o Recife.
O mais próximo do autor é o
narrador Adonias, médico que,
em companhia de dois primos,
retorna à casa paterna sob o
pretexto de assistir à morte do
avô, um sertanejo retado que
deveria se chamar Abraão, mas,
por insistência do padre de batismo, acabou Raimundo Caetano, com muita honra.
O outro primo, um que foi registrado como filho do avô e irmão do próprio pai, escondeu
suas dores na Noruega, enquanto o terceiro caminhou a
esmo entre Paris e Nova York,
numa suposta carreira musical
que se revela pouco artística.
"Mas o que fizemos Davi, Ismael e eu todos esses anos, senão fugir? O mar!", reconhece
Adonias, ao se dar conta da repetição dos atos dos antepassados da Idade Média. Ou da semelhança com os judeus, que
nunca têm o direito de esquecer, mesmo não o sendo mais.
Da confluência autorizada
entre o rio Jaguaribe e o Jordão, onde o trem azul do Cariri
nem faz mais curva, onde o Muro das Lamentações esbarra no
Santo Sepulcro situado a poucos metros da estátua do Padim
Cícero, no Juazeiro do Norte, e
onde a seca da caatinga chama
chuva forte para enxaguar mágoas, Ronaldo Correia de Brito
extraiu um livro denso, preciso
e, às vezes, esquemático.
Sobretudo pela busca insana
de encaixar destinos irreconciliáveis e mundos tão diversos.
Felizmente, passa longe do new
regionalismo que tentam lhe
atribuir: se finca no presente e
permanece atento a uma realidade na qual, até segunda ordem, a globalização é soberana.
Ao final, diante da morte que
não chega a tempo na hora e local combinados, branquelas,
gentios e caciques retomam
suas vidinhas sem discussão.
Afinal, o período de confrontos
serviu para o resgate individual, um rápido intervalo entre
o gênesis e o apocalipse de cada
um dos nascidos na Galiléia -o
lugar onde nunca se sabe o que
é verdade.
GALILÉIA
Autor: Ronaldo Correia de Brito
Editora: Alfaguara
Quanto: R$34,90 (236 págs.)
Avaliação: bom
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