São Paulo, sábado, 29 de novembro de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Restos e ruínas


Livro de estréia do fotógrafo Mario Rui Feliciani, "Dobras" traz contos marcados por sensibilidade para o precário

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"NÃO SE JULGA um livro pela capa", diz o ditado. No caso de "Dobras", porém, seria pena deixar de fazer uma relação entre a imagem da capa -de autoria do próprio autor- e os contos desse livro de estréia.
Mario Rui Feliciani é um fotógrafo cujos ensaios criaram uma narrativa visual muito particular de São Paulo: flagrantes parciais de bairros de subúrbio ou de casas e ruas que, encravadas na fachada tecnológica da metrópole, guardam resquícios de uma cidade em que os laços comunitários e as pessoas pareciam se projetar sobre "a janela e o portão" (que é o título de um dos textos de seu livro de contos).
Resulta daí uma poética em que a marca do humano se apresenta obliquamente, na forma de intervenções sobre superfícies de muros, placas de zinco, postes.
Na fotografia que ilustra "Dobras" (extraída da série "Quando o Carteiro Chegar"), uma caixa de correio, improvisada sobre o que parece ser uma chapa metálica costurada por arames, resume aquilo que se encontra nos contos: um olhar generoso, mas nada complacente, sobre vivências que não se encaixam na racionalidade do projeto moderno.
As fotografias de Feliciani lembram muito a "arte povera" de Alberto Burri ou Antoni Tápies -artistas cujas telas compõem planos em combustão e materiais lacerados pelo tempo.
Seus contos retomam essa perspectiva: são modernos no procedimento de eleger um ponto de vista parcial, que assinala a perda da totalidade, mas colocam em primeiro plano aqueles resíduos de experiência que foram recalcados por formas de sociabilidade inclementes com o fraco, o feio, o fracassado.
Um velho arqueado e seu cão sem plumas, disputando a primazia na morte ("Três Visitas da Indesejável"); um homem-placa que vende e compra ouro entre camelôs e transeuntes da rua do centro, para vergonha da filha ("Ouro"); o garoto que se refugia num quintal e se masturba pela primeira vez ("Menino Rueiro") -são vidas por um fio, agarradas à desolação.
A sensibilidade fotográfica de Feliciani aparece explicitamente no conto "Os Pássaros", em que a personagem que registra passarinhos cai na tentação de flagrar mulheres que se banham ao sol, desencadeando sentimentos persecutórios: aquele que olha é cerceado pelo olhar do outro, nessa sociedade na qual a espetacularização do corpo pune quem viola seus códigos falsamente tolerantes.
Feliciani cria enredos nas "dobras" que levam dos redutos de urbanóides cultos ("Gente Ilustrada") à "tristeza maior do mundo". A cidade captada por seu diafragma narrativo poderia ser resumida no verso de Caetano Veloso: "Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína".


DOBRAS
Autor:
Mario Rui Feliciani
Editora: Sebastião Grifo
Quanto: R$ 20 (136 págs.)
Avaliação: ótimo



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