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SABATINA FOLHA
JOSÉ SARAMAGO
A humanidade não merece a vida
Prêmio Nobel português se define como um "comunista hormonal" e afirma que os instintos servem melhor aos animais do que a razão aos homens
O ESCRITOR português José Saramago, 86,
disse ontem que "a história da humanidade é um desastre" e que "nós não merecemos a vida". O autor, vencedor do Nobel de Literatura em 1998, participou de sabatina da Folha em celebração dos 50 anos da Ilustrada. O debate, assistido por 300 pessoas em um Teatro Folha lotado, teve como mediador o secretário de Redação do jornal Vaguinaldo Marinheiro. Participaram
também, como entrevistadores, o crítico Luiz Costa
Lima, a repórter da Ilustrada Sylvia Colombo e Manuel da Costa Pinto, colunista do caderno.
DA REPORTAGEM LOCAL
HUMANIDADE
A história da humanidade é um
desastre contínuo. Nunca houve nada que se parecesse com
um momento de paz. Se ainda
fosse só a guerra, em que as
pessoas se enfrentam ou são
obrigadas a se enfrentar... Mas
não é só isso. Esta raiva que no
fundo há em mim, uma espécie
de raiva às vezes incontida, é
porque nós não merecemos a
vida. Não a merecemos. Não se
percebeu ainda que o instinto
serve melhor aos animais do
que a razão serve ao homem.
O animal, para se alimentar,
tem que matar o outro animal.
Mas nós não, nós matamos por
prazer, por gosto. Se fizermos
um cálculo de quantos delinqüentes vivem no mundo, deve
ser um número fabuloso. Vivemos na violência. Não usamos
a razão para defender a vida;
usamos a razão para destruí-la
de todas as maneiras -no plano privado e no plano público.
MARXISMO HORMONAL
Desde muito novo orientei-me
para a consciência de que o
mundo está errado. Não importa aqui qual foi o grau da
minha militância todos esses
anos. O que importa é que o
mundo estava errado, e eu queria fazer coisas para modificá-lo. O espaço ideológico e político em que se esperava encontrar alguma coisa que confirmasse essa idéia era, é claro, a
esquerda comunista. Para aí fui
e aí estou. Sou aquilo que se pode chamar de comunista hormonal. O que isso quer dizer?
Assim como tenho no corpo
um hormônio que me faz crescer a barba, há outro que me
obriga a ser comunista.
CRISE ATUAL
Marx nunca teve tanta razão
quanto agora. O trabalho constrói, e a privação dele é uma espécie de trauma. Vamos ver o
que acontece agora com os milhões de pessoas que vão ficar
sem emprego. A chamada classe média acabou. Ou melhor:
está em processo de desagregação. Falava-se em dois anos
[para a recuperação da economia depois da crise financeira];
agora já se fala em três. Veremos se Marx tem ou não razão.
DEUS E BÍBLIA
Por que eu teria de mudar [a
concepção de Deus após a
doença]? Porque supostamente me salvou a vida? Quem me
salvou foram os médicos e a minha mulher. E Deus se esqueceu de Santa Catarina? Não
quero ofender ninguém, mas
Deus não existe. Salvo na cabeça das pessoas, onde está o diabo, o mal e o bem. Inventamos
Deus porque tínhamos medo
de morrer, acreditávamos que
talvez houvesse uma segunda
vida. Inventamos o inferno, o
paraíso e o purgatório. Quando
a igreja inventou o pecado, inventou um instrumento de
controle, não tanto das almas,
porque à igreja não importam
as almas, mas dos corpos. O sonho da igreja sempre foi nos
transformar em eunucos.
A Bíblia foi escrita ao longo
de 2.000 anos e não é um livro
que se possa deixar nas mãos de
um inocente. Só tem maus conselhos, assassinatos, incestos...
RELAÇÃO COM PORTUGAL
Espalham por aí idéias sobre
minha relação com meu país
que não estão corretas. Saímos
[Saramago e sua mulher, Pilar]
de Lisboa [para a ilha de Lanzarote] em conseqüência de uma
atitude do governo, não do país
nem da população. Mas do governo, que não permitiu que
meu livro ["O Evangelho Segundo Jesus Cristo"] fosse inscrito num prêmio da União Européia. Nunca tive problemas
com o meu país, mas com o governo, que depois não foi capaz
de pedir desculpas. Nisso, os
governos são todos iguais, dificilmente pedem desculpas. Fomos para lá e continuamos pagando impostos em Portugal.
Agora temos duas casas. Mudei
de bairro, porque o vizinho me
incomodava. E o vizinho era o
governo português.
ACORDO ORTOGRÁFICO
Em princípio, não me parecia
necessário. De toda forma, continuaríamos a nos entender. O
que me fez mudar de opinião
foi a idéia de que, se o português quer ganhar influência no
mundo, tem de adotar uma grafia única. Se Portugal tivesse
140 milhões de habitantes, provavelmente teríamos imposto
ao Brasil a nossa grafia. Acontecem que os 140 milhões estão
no Brasil, e o Brasil tem mais
presença internacional.
Perderíamos muito com a
idéia de que o português é nosso, nós o tornaríamos uma língua que ninguém fala. Quando
acabou o "ph", não consta que
tenha havido uma revolução.
LITERATURA BRASILEIRA
Houve um tempo em que os autores brasileiros estavam presentes em Portugal, e em alguns casos podíamos dizer que
conhecíamos tão bem a literatura brasileira quanto a portuguesa. Graciliano Ramos, Jorge
Amado, os poetas, como João
Cabral [de Melo Neto], Manuel
Bandeira, essa gente era lida
com paixão. Para nós, aquilo representava a voz do Brasil. Agora, que eu saiba, não há nenhum escritor brasileiro que
seja lido com paixão em Portugal. Culpo a mim, talvez, por
não ter a curiosidade. Mas também não temos a obrigação de
descobrir aquilo que nem sabemos se existe.
LEITOR
O leitor me importa só depois
que escrevi. Enquanto escrevo,
não importa, porque não se escreve para um leitor específico.
Há dois tempos, o tempo em
que o autor não tinha leitores e
o tempo em que tem. Mas a responsabilidade é igual, é com o
trabalho que se faz. Agora, eu
penso nos leitores quando recebo cartas extraordinárias. É
um fenômeno recente. Ninguém escreveu a Camões, mas
hoje há essa comunicação, essa
ansiedade do leitor.
"Em nome de todos os brasileiros, obrigada por existir", disse
alto, ao final da sabatina, uma
integrante da platéia, enquanto
Saramago terminava de falar.
Assista ao vídeo da
sabatina
www.folha.com.br/0833310
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