São Paulo, sexta-feira, 29 de dezembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CON


Verdades e mentiras dos anúncios de outrora

"Contra a força não há resistência, o Jequiá, o Jequiá é uma potência!" Encerro o ano, o século e o milênio citando o hino de um clube modesto, na Ilha do Governador, cujos bailes de Carnaval começavam e terminavam com esse refrão definitivo, avassalador, letal para seus adversários, que na verdade não existiam, pois era clube único daquele povo que os dicionários ainda chamam de ""ilhéu".
Tenho um amigo que coleciona coisas assim, tidas como absolutas, inquestionáveis, e, embora autoproclamadas, funcionam como petardos mortais contra as hostes inimigas. Os cruzados fizeram misérias em terras de infiéis, usando um slogan famoso, ""Deus vult!" (Deus o quer!), e as esposas mais piedosas da Idade Média usavam camisolas com uma fenda em determinada parte onde também se lia o mesmo desejo do Criador de Todas as Coisas, ""Deus vult!". Era uma forma de encorajar o marido -se o mesmo fosse um débil- ou justificar uma posse esfomeada, se fosse o caso.
O imperador Constantino, antes da batalha de Lepanto, viu no céu uma cruz com um dos primeiros slogans do mercado humano: ""In hoc signo vinces" (Com este sinal vencerás). Como sabemos, a história universal mudou depois disso, o que mostra, entre outras considerações metafísicas, que o apelo físico de um bom marketing também funciona.
Mas nem todos. Lembro um tempo em que a classe teatral bolou o slogan ""Vamos ao teatro" e parece que as coisas não melhoraram. Com uma população de 169 milhões de brasileiros, o público disponível permanece na mesma faixa dos 100, 120 mil espectadores, se a peça faz sucesso. Quando o Brasil tinha 70 milhões de habitantes, a frequência era a mesma.
E isso serve também para o livro. E até certo ponto para o cinema, que, ao enfrentar a concorrência da TV e dos vídeos domésticos, bolou um slogan ambíguo: ""Cinema ainda é a melhor diversão". Houve reclamações, tiraram o ""ainda" da frase, mas nem com isso o apelo teve retorno.
Na seara comercial, há slogans que fizeram história embora não fizessem resultados. Lembro um refrigerante que lançou uma campanha virulenta e poética: ""O que é bom não se mistura, Moselito é uva pura". Saiu de circulação.
Era comum aproveitar músicas de sucesso para nelas embarcar a mensagem deflagradora de vendas. Era menino quando Lamartine Babo lançou a marchinha ""Ride palhaço", inspirada num trecho da ópera de Leoncavallo. Um laboratório bolou uma pomada chamada Utisal que curava qualquer tipo de dor. E as rádios tocavam diversas vezes ao dia: ""Ride palhaço, passa Utisal no braço, mas se não fizer efeito, passa Utisal no peito".
Fez tanto sucesso, a musiquinha, não o remédio, que logo surgiu uma paródia, na época considerada indecente: ""Ride palhaço, passa Utisal no braço, mas se a dor for profunda, passa Utisal na bunda".
Naquele tempo, o terror da humanidade não era a Aids, mas a sífilis. Diziam os entendidos que todo brasileiro era um pouco sifilítico, pois, sendo doença sexualmente transmitida, todos nós abusávamos do pecado da carne, daí que ninguém nascia sem uma farta dose de treponemas no sangue.
Nos bondes havia um anúncio que muito me impressionava. Um sujeito sentado, com um revólver na cabeça, pronto para o suicídio. E um amigo entrando naquele momento e gritando: ""Não faça isso! Tome o elixir 914!". Era a última moda em matéria de sífilis, bolada durante a 1ª Guerra Mundial, daí o nome de 914.
Daí também que, quando comecei a ler os clássicos, achava que o jovem Werther, a adúltera Ana Karenina, a insatisfeita Ema Bovary deveriam ter tomado o elixir salvador. Não teriam se suicidado, pois, além de curar a sífilis, o 914 devia curar os excessos românticos que, segundo Stendhal, são aparentados com a doença. Um sifilítico é sempre romântico, embora a recíproca nem sempre o seja.
Quando se fala em slogans, reclames ou propagandas, o exemplo mais citado é o do ""Veja ilustre passageiro", que fez a glória do Rum Creosotado, tiro mortal na bronquite numa época em que 11 entre dez brasileiros tinham os brônquios avariados. Diversas gerações decoraram a famosa estrofe, atribuída a Olavo Bilac ou a Bastos Tigre -até hoje não há consenso sobre a autoria das "Cartas Chilenas" (Tomás Antônio Gonzaga?), da "Arte de Furtar" (Vieira?) e do anúncio do Rum Creosotado.
De mau gosto, pois muito medo me causava na infância, era um slogan que garantia em letras garrafais: ""O mundo vai acabar!". Eu tinha a tendência (que felizmente perdi ao me tornar escritor) de acreditar em tudo que lia impresso. Bem verdade que o anúncio se referia a uma liquidação do Dragão da Rua Larga, uma loja que tinha a fama de vender barato o ano todo e que, quando liquidava o estoque, provocava realmente um fim de mundo.
Se o mundo não acabou, nem mesmo na Rua Larga, o ano, o século e o milênio estão acabando. E estou acabando a crônica, satisfeito, porque, entre outras coisas, lembrei que contra a força não há resistência, o que é bom não se mistura e o mundo parece que ainda não acabou.



Texto Anterior: Show: Funkacid revê clássicos da black music
Próximo Texto: Cinema/Estréia - Dominação: Winona Ryder exorciza seus demônios
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.