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COMENTÁRIO
Desta vez, a realidade ultrapassou a metáfora
GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM NOVA YORK
Não posso dizer que Susan
Sontag era minha amiga,
propriamente. Mas éramos "conhecidos". E esse conhecimento
se deu através de Samuel Beckett,
seu fascínio pela obra dele e pelo
fato de eu conhecer o mestre. Falo
da década de 80, quando todos os
ícones estavam vivos e eu estava
em cartaz com a "Beckett Trilogy"
no La MaMa, estrelada por Julian
Beck, um grande amigo (esse,
sim, enorme amigo) de Susan.
Susan vinha visitar a produção
várias vezes, e íamos tomar café
numa espelunca anexa ao teatro,
na rua 4, no East Village. Ela me
perguntava (a palavra mais certa
seria "torturava" com perguntas)
sobre Beckett: "Como ele é?", "como anda?", "como senta?", "você
conhece o apartamento dele?".
Coincidentemente, o nome da
mulher de Beckett era Suzanne.
Ela me atentou para esse fato.
Dias depois, recebo um telefonema, e ela me convida para conhecer sua ENORME coleção de
botas de caubói, quando ainda
morava na rua 17 e estava casada
com a coreógrafa Lucinda Childs
(que mais tarde, em 95, se tornou
parceira minha numa produção
fracassada, que tinha Luciano Berio como líder, em Florença).
Fiquei boquiaberto e não conseguia muito entender aquela intelectual, de quem eu tinha lido tudo e havia assistido aos debates
(ela mediava Umberto Eco na
New York University, mas não o
deixava falar) e divagava apaixonadamente sobre Roland Barthes,
com aquele "closet" repleto com
prateleiras e mais prateleiras
cheias de botas de caubói. "São o
meu fetiche e não me pergunte
mais!", dizia ela, morrendo de rir.
"Quem venceu a batalha contra o
câncer [ela escreveu um livro sobre isso, "A Doença como Metáfora') e tem um filho para sustentar,
pode-se dar a esse luxo."
Um dia me chamou às pressas
para Boston, ou melhor, Cambridge, Massachusetts, onde fica o
American Repertory Theatre. O
diretor artístico de lá, Robert
Brustein (um teórico importante
do teatro americano), a havia
convidado a montar uma peça de
Diderot. E lá fomos nós. Daniela
Thomas, eu e Alisa Solomon (minha amiga e crítica do "Village
Voice") e, decepcionados com a
produção, não sabíamos o que dizer no final do espetáculo.
Mas a "flamboyance" de Susan
não deixava espaço para que alguém inserisse qualquer tipo de
crítica. O público dormia, e a crítica tinha caído de pau. Susan precisava de carinho e elogios. Alisa,
vidrada em Sontag, procurou desviar o assunto e falar da sua obra
como semióloga, e isso a irritou
bastante. "Os críticos não iam tolerar a minha incursão no teatro.
Seria demais para eles. Eles tinham que me destruir!!!!!"
De volta a Nova York e separada
de Lucinda, recebo um telefonema dela. "Venha ver o meu novo
apartamento na King Street, no
SoHo. Agora estou morando do
lado da Grove Press, ou seja, um
pouco mais perto de Beckett."
Achei engraçado a facilidade
com que Susan tratou sua separação e a mudança. Era época de
plena "guerra" entra ela e Camille
Paglia na imprensa americana.
Ela, dessa vez, me perguntou sobre Machado de Assis. Envergonhado, disse que não sabia muito
sobre Machado e que era melhor
continuarmos a falar sobre Beckett. Foi lá que ela teve a primeira
idéia de encenar "Esperando Godot". Só não sabia ainda onde.
Anos se passaram e ela aparecia
esporadicamente. Viu o "Flash
and Crash Days" no Lincoln Center e me mandou um cartão: "Não
achei a produção à altura da trilogia Kafka, me ligue". A essa altura,
já estava casada com a fotógrafa
Annie Leibovitz e morava no
complexo "posh" aqui nessa mesma rua 23, onde moro, só que no
lado do Chelsea. Annie, por sua
vez, já havia sido namorada de Bia
Feitler, a brasileira que revolucionou a diagramação da "Harper's
Bazaar" e "Rolling Stone" e nos
deliciamos em conversa fútil.
Sempre foi ativa em vários aspectos da vida intelectual, mas
perdemos contato nestes últimos
anos. Eu a seguia pela imprensa e
vi que foi uma das vozes mais lúcidas e ativas quando os aviões
abateram o WTC e continuou
sendo uma das vozes dissidentes e
lúcidas na América até o fim.
Gerald Thomas é diretor teatral
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