São Paulo, sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

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crítica

"Em Direção ao Sul" revela face sinistra do Haiti

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

A primeira cena do filme é uma surpresa preocupante: no saguão de um aeroporto uma senhora negra tenta dar sua filha a um distinto senhor negro. O aeroporto fica em Porto Príncipe, Haiti, e estamos nos tempos de Baby Doc. Pode ser, portanto, mais um filme que explora a miséria de certas nações.
Mas Laurent Cantet, que nos deu o belíssimo "A Agenda" (2001), mostra que não está aí para brincar ou fazer populismo. Logo veremos que seu destino é um resort onde senhoras, americanas e maduras, se encontram para namorar jovens haitianos.
Um paraíso das solteironas, diria Mazzaropi. Em todo caso, uma modalidade por aqui ainda desconhecida de turismo sexual. Duas delas, Ellen (Charlotte Rampling) e Brenda (Karen Young), disputarão as atenções de Legba (Ménothy Cesar).
É claro, essas coisas não acontecem sem problemas. Ellen sente-se um pouco dona de Legba, quando chega Brenda. Todas se acham, de certo modo, donas dos rapazes, e não sem razão. Não é inexato dizer que elas os compram. Mas, como o jogo não é assim tão claro, quando duas querem comprar a mesma mercadoria, descobre-se, entre outras, que ele não é apenas uma mercadoria.
No meio disso, surge a voz de Albert, o distinto senhor da cena de abertura e gerente do hotel. Ele quer proibir Legba de jantar na mesa com as hóspedes. Brenda se escandaliza e comenta que Albert é racista. A voz de Albert nos diz outra coisa: ele é de uma família nacionalista.
Resistiu à invasão americana de 1915. Hoje, pergunta-se como resistir a essa outra invasão, mais insidiosa: a do dinheiro. Não há como resistir, nota-se por sua expressão. O filme desenha, desde então, dois caminhos. Um deles, diz respeito aos afetos das mulheres -e a maneira como dirige suas duas atrizes principais já tornam obrigatório olhar com atenção para os filmes do diretor- e ao seu inocente racismo (resumindo: elas admitem esses negros, mas não os negros do Harlem, por exemplo). O outro, político, concerne às relações políticas no interior do Haiti. Embora pouco evidentes, os sinais da violência aparecem aqui e ali, com uma força que permite ao espectador imaginar o que existe de sinistro naquele país -talvez tão sinistro quanto o turismo que as mulheres fazem, com toda inocência. Pois o correr do tempo é que nos fará compreender a cena inicial, em que a mulher aflita procura dar a filha a alguém que cuide dela. Doar a menina talvez seja a maneira de tirá-la do circuito de mercadorias em que seja os estrangeiros seja os de dentro transformaram o Haiti. Ou, mais amplamente, o sul.


EM DIREÇÃO AO SUL
    
Direção: Laurent Cantet
Com: Charlotte Rampling, Karen Young, Louise Portal
Onde: em cartaz no HSBC Belas Artes e Reserva Cultural



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