São Paulo, sábado, 29 de dezembro de 2007

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Livros

"Ida aos documentos evitará cisões"

Ana Carolina Fernandes - 10.fev.2006/Folha Imagem
João Fragoso, diante do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, no Rio


Para João Fragoso, que lança livro sobre elite nos séculos 16 a 18, marxismo fez estragos ao preferir classes e não indivíduos

Historiador carioca estuda relações de compadrio entre senhores e escravos e a divisão da elite entre nobres da terra e negociantes

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

O historiador carioca João Fragoso, 49, causou uma tremenda confusão na academia quando, no ano passado, em uma entrevista à Ilustrada, chamou alguns colegas da USP, marxistas mais extremos, de "xiitas", por viverem num último reduto de discussão das "teorias da dependência".
"Hoje percebo que não deveria ter usado aquele termo.
Muitos pesquisadores, inclusive amigos, se sentiram ofendidos. Eu me referia só a alguns historiadores mais radicais. Ainda assim, foi um equívoco."
Fragoso acaba de lançar "Conquistadores e Negociantes - Histórias das Elites no Antigo Regime nos Trópicos/América Lusa, séculos 16 a 18", coletânea de artigos dele e de colegas do grupo de estudos voltado a este tema na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde leciona.
Apesar de reconhecer o exagero da expressão com que designou os paulistas, Fragoso segue firme nas críticas à tendência da "turma de São Paulo" de ver a história do Brasil a partir do binarismo metrópole x colônia, ou senhor x escravos.
Assim como seus colegas da "turma do Rio", Fragoso é adepto da idéia de que houve menos um rompimento e mais uma continuidade no processo de independência do Brasil.
A dinâmica interna do enriquecimento de comerciantes brasileiros que operavam o tráfico de escravos, para este grupo, teria sido o motor da cisão. No artigo "Fidalgos e Parentes de Pretos", Fragoso acompanha trajetórias de personagens atuantes da elite carioca nos séculos 17 e 18. Distingue, principalmente, dois grupos: o da nobreza principal da terra, que descendia dos primeiros conquistadores, e o dos comerciantes que começariam a chegar em grande número depois.
Apesar da relação explosiva e do "clima de teimosia" que imperava entre ambos os grupos, reforça o historiador, nenhum deles almejava, naquele momento da história, pelo menos, romper com a metrópole.
A disputa, pelo contrário, era mais para que pudessem passar a fazer parte da aristocracia e, com isso, ter a atenção do rei português e o acesso às chamadas "mercês", ou seja, terras, cargos administrativos e outros benefícios.
Desse modo, Fragoso delineia um conceito de Antigo Regime nos trópicos, que teria surgido de uma fissura do modelo que se configurava na metrópole, mas que funcionava com os mesmos velhos instrumentos. "Exigir direito por ter chegado antes, por pertencer a determinada família, por prestar serviços à coroa e, com isso, se considerar merecedor de mercês são códigos do Antigo Regime europeu, reproduzidos por esses grupos aqui."
A diferença seria que, numa sociedade que enriquecia rapidamente, como o Rio de Janeiro do século 18, as chances de "plebeus" acumularem divisas era muito grande. Ao mesmo tempo, crescia a dependência de nobres pobres pelos novos comerciantes ricos.
"Entender a mobilidade social dos indivíduos entre esses grupos é fundamental para perceber a complexidade da composição da elite da época." Para isso, porém, ele considera necessário deixar um pouco de lado o conceito de "classe".
"Faço críticas ao marxismo, com respeito, até porque também me formei dentro dele.
Mas é preciso admitir que ele fez um imenso estrago ao dizer que tudo se resolvia na luta de classes e o mau seria sempre o senhor de terras. Aí então não precisa nem ir olhar os documentos. Você já sai com a conclusão fechada. É óbvio que isso impede uma compreensão do que era aquela sociedade tão heterogênea e peculiar", diz.

Senhores e escravos
Fragoso costuma ser duramente criticado quando sugere que havia uma espécie de acordo entre senhores e escravos e que este teria permitido que a escravidão durasse tanto tempo no Brasil. Ele defende que existia uma troca de favores entre ambos, e que o escravo era cúmplice da própria situação que determinava seu cativeiro.
"Não havia aqui campos de concentração ou de extermínio. Os escravos recebiam algo em troca e barganhavam com os senhores. É claro que essa negociação se dava dentro de um ambiente extremamente hierárquico. Mas é desinformação achar que os negros chegavam ao Brasil e a escravidão surgia na vida deles como se fosse uma novidade."
Fragoso lembra que a desigualdade e a servidão eram constantes nos países africanos de onde vinham. "Eles conheciam a escravidão melhor até que os próprios portugueses! Agora, os marxistas gostam de achar que os negros desembarcavam aqui tendo consciência da exploração, como se tivessem lido o E.P. Thompson [historiador marxista britânico, 1924-1993]. É ridículo."
A documentação sobre batismos de negros, diz Fragoso, tem ainda muito a dizer sobre as relações de compadrio entre senhores e escravos de certas fazendas com os de outras.
"Havia ainda hierarquia entre os negros nas senzalas. Era um sistema complexo que funcionava na base de favores e regalias. Pode-se dizer que o escravo era um cúmplice na manutenção daquela desigualdade"

Menos blablablá
Temas polêmicos assim não podem deixar de causar cisões entre os estudiosos. Fragoso sabe bem quem são seus opositores, mas é otimista quanto ao rumo dos debates.
"A democratização do país, o amadurecimento da nossa cultura política por si só vai derrubar essas igrejas, esses ícones locais, essa coisa de "eu sigo fulano e não beltrano". Isso é coisa do tempo dos coronéis." Fragoso diz que tem sido chamado de "empirista" por pedir mais a atenção dos colegas para as fontes primárias.
"Quando deixarmos um pouco de lado as discussões teóricas e nos voltarmos com mais afinco às fontes primárias, aí sim creio que vamos superar as diferenças ideológicas e aprofundar o conhecimento sobre o Brasil."


CONQUISTADORES E NEGOCIANTES
Organizadores:
João Fragoso, Carla Maria Carvalho de Almeida e Antonio Carlos Jucá de Sampaio
Lançamento: Civilização Brasileira
Quanto: R$ 55 (462 págs.)


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