São Paulo, quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

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MARCELO COELHO

Sir Gawain


O poema lembra o desafio de manter o compromisso, e a facilidade com que nós muitas vezes fraquejamos


UMA FIGURA estranha interrompeu, certa vez, os festejos de fim de ano na corte do rei Artur. Montado num cavalo de crinas verdes, um guerreiro gigantesco, coberto de vestes verdes, verdes também a barba e os cabelos, apresentou-se diante da Távola Redonda.
Como única arma, trazia um machado -e viera desafiar os cavaleiros. Se eram tão corajosos como se dizia, certamente alguém teria de aceitar o trato que ele tinha a propor.
O Cavaleiro Verde entregaria seu machado a quem quisesse empunhá-lo. Iria então inclinar-se, oferecendo sua nuca para o primeiro golpe. Só impunha uma condição: que, dali a um ano, seu agressor o procurasse, para devolver-lhe o machado e receber um golpe em troca.
Os súditos do rei Artur ficaram atônitos diante do desafio. O visitante começa a zombaria: "Então, onde está a coragem dos famosos cavaleiros da távola redonda?".
Provocado, o próprio rei Artur se apronta para segurar o machado e atacar o Cavaleiro Verde. Mas seu sobrinho, sir Gawain, toma a palavra: "Sou mais fraco, e menos inteligente", diz ele. "Se eu vier a morrer nesse desafio, não farei falta aos meus companheiros".
Pega o machado e decepa o Cavaleiro Verde. Este então se levanta, segura a própria cabeça, monta o cavalo e se despede de sir Gawain: "Daqui a um ano nos veremos"."
Sir Gawain ainda quer reter o desafiante. Afinal, não sabe seu nome, nem onde encontrá-lo na data marcada. "Você me encontrará", responde o Cavaleiro Verde.
É assim que começa o poema anônimo de sir Gawain, escrito na Inglaterra por volta de 1400. A tradução para o português, publicada em 1997 pela Francisco Alves, só está disponível em sebos atualmente; não sei se existe outra.
A história foge ao padrão tradicional de dragões, combates e feiticeiras. Gawain mata alguns pelo caminho, mas seu maior problema será o de como encontrar o tal Cavaleiro Verde, para pagar pontualmente a dívida que contraiu no último dia do ano.
Ele se sente praticamente condenado à morte. Como não ter medo, diante da perspectiva de devolver o machado ao inimigo, de inclinar-se, e de esperar o golpe que haverá de cortar a sua cabeça?
Um bom cavaleiro andante, todavia, não se destaca pela coragem bruta. O principal é manter a palavra dada -e a bravura é menos uma questão de inconsequência física que de honradez.
De qualquer modo, o maior desafio de sir Gawain havia sido enfrentado poucos dias antes de seu encontro final com o Cavaleiro Verde.
Nas suas andanças, em pleno inverno, Gawain tinha ido parar num belíssimo castelo. O dono do lugar recebe-o com prodigalidade. Deixa-o depois, sozinho, em amplos aposentos. Gawain será visitado pela linda e jovem mulher do dono do castelo.
Ela se insinua; provoca-o, encanta-o. Como bom cavaleiro, entretanto, nosso herói resiste aos avanços da jovem.
Termina aceitando dela apenas um presente -um cinto verde, que irá protegê-lo magicamente dos ataques de qualquer inimigo. Bom apetrecho para quem, nas próximas horas, haveria de expor-se a uma machadada no pescoço.
Chega o fim do ano, e a hora do encontro com o Cavaleiro Verde. Gawain treme; o inimigo ri do seu medo, adia o golpe fatal. O fio do machado, por sorte, apenas raspa a nuca de Gawain. Ele sangra, mas sobrevive.
Artes do cinto mágico, sem dúvida. E vergonha eterna para Gawain -que não deveria nunca ter aceitado o presente. Fosse para ser corajoso, teria de sê-lo sem ajuda de feitiços. E não ficava nada bem a um cavaleiro esconder do anfitrião os presentes que recebera.
A leve traição ao dono do castelo e o subterfúgio mágico na hora de enfrentar o Cavaleiro Verde constituem motivos suficientes para marcar sir Gawain como um herói imperfeito.
Faltas perdoáveis, todavia -e toda a corte do rei Artur, em homenagem a Gawain, passa a usar uma faixa verde junto à espada, como lembrança do cinto que ele não teve a força de recusar.
Boa história para o fim do ano, acho. Fala da necessidade que temos de manter nossos próprios compromissos, e da facilidade com que fraquejamos.
Esse Cavaleiro Verde, que nos espera daqui a 12 meses, para cobrar sua parte no trato (e para nos perdoar onde falharmos), sempre volta: seu nome é ano velho, e também é ano bom. Feliz 2011.

coelhofsp@uol.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Contardo Calligaris



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