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FERREIRA GULLAR
Zoologia fantástica
Como disse aqui, sou um
contumaz inventor de teorias -algumas até foram levadas
a sério como a Teoria do Não-Objeto; outras, injustamente desconsideradas. Nem por isso desisto,
tanto que uma de minhas teorias
mais recentes é a de que uma das
funções do artista é criar o maravilhoso (ou o surpreendente), pela
razão simples de que não encontramos no mundo maravilhas em
quantidade suficiente para satisfazer a fome de maravilha que
habita as pessoas.
Lembro o exemplo dos reis europeus que colecionavam animais espantosos como girafas,
elefantes, rinocerontes, camelos...
Se o leitor me permitir, contarei
um fato ocorrido comigo mesmo:
quando menino, achei numa
praia um pequeno búzio colorido
que me deslumbrou; então saí à
procura de outros búzios igualmente lindos, mas nenhum mais
encontrei. Búzios lindos e animais extravagantes não podemos
criá-los, mas poemas, sinfonias,
quadros, esculturas, sim. Logo,
pode-se dizer que cada obra que o
artista cria aumenta a quantidade de coisas maravilhosas existentes no planeta.
Lembrei-me dessa teoria ao topar na minha estante com um livro de Jorge Luis Borges intitulado "Manual de Zoologia Fantástica", editado em 1957, em cujo
prefácio faz ele uma afirmação
que tem a ver com o tal fascínio
dos reis por animais exóticos. Escreve que um garoto, levado pela
primeira vez a um jardim zoológico, vê animais que nunca vira,
como jaguares, abutres, bisões e,
em vez de ficar assustado, encanta-se com eles. Borges parte daí
para falar de outro zoológico, o
das mitologias, habitado por animais inventados, como esfinges,
grifos, centauros e dragões.
Não resisto à tentação de falar
desses seres, alguns dos quais vocês já conhecem, como a ave fênix, que renasce das cinzas. O que
eu não sabia é que, segundo a tradição, ela dura exatos 1.461 anos;
como, segundo os antigos, cumprido o ciclo astronômico, a história universal se repetiria em todos
os seus detalhes, a ave fênix viria
a ser um espelho ou uma imagem
do universo.
Mas, afora o centauro (tido como o mais harmonioso animal da
zoologia fantástica), o grifo, o
dragão, a sereia, existe o cem-cabeças, que é um peixe estranhíssimo chamado também kapila.
Uma biografia chinesa de Buda
conta ter ele encontrado uns pescadores que, à custa de muito esforço, tiraram do mar um peixe
enorme, com uma cabeça de macaco, outra de cão, outra de cavalo, outra de raposa, outra de porco, outra de tigre e assim até o número cem. Buda perguntou ao
peixe: "-Não és kapila?". "-Sou
kapila", responderam as cem cabeças antes de morrer.
Kapila teria sido um monge que
a todos superara no conhecimento dos textos sagrados e, quando
morreu, se transformou naquele
peixe.
Não é menos curiosa a história
dos "animais esféricos", que, segundo Platão, teriam inspirado
em Deus a forma esférica do
mundo. Seguindo essa linha,
mais de 500 anos depois -conforme informa Borges-, em Alexandria, Orígenes ensinou que os
bem-aventurados ressuscitavam
em forma de esfera e entravam
rodando na eternidade, o que,
mal comparando, me lembra a
ala das baianas da Portela, que
também entra rodando, senão na
eternidade, na avenida...
De todos esses animais fantásticos, não tenho dúvida de que os
da predileção de Borges são os
que chama de "animais dos espelhos". Conta que, na época do imperador Amarelo, o mundo dos
homens e o dos espelhos não
eram, como agora, incomunicáveis e, além do mais, os seres de
um e de outro mundo não coincidiam nem nas formas nem nas
cores. Passava-se de um mundo
para o outro sem problema.
Até que, certa noite, o pessoal
do espelho invadiu a Terra, travando-se uma sangrenta batalha,
vencida pelas tropas do imperador Amarelo, que rechaçou os invasores e os encarcerou nos espelhos, impondo-lhes a tarefa de repetir todos os atos dos homens.
Mas dia chegará em que aqueles
oprimidos se libertarão e reunirão forças para romper as barreiras do vidro e do metal. E há
quem diga que, antes da invasão,
ouviremos, vindo do fundo dos
espelhos, o rumor das armas...
Parece uma história inventada
por Jorge Luis Borges, que sempre
foi invocado com espelhos, como
o demonstra o célebre soneto a
que deu o título de "Ao Espelho" e
em que diz : "Por que duplicas,
misterioso irmão, / O menor movimento desta mão?" e termina
assim: "Quando eu morrer, copiarás a outro, / Depois a outro, a outro, a outro, a outro...".
Mas o animal, a meu ver, mais
fascinante dessa zoologia inventada é o a bao a qu, que habita a
escadaria da Torre da Vitória, em
Chitor, donde se vê a mais bela
paisagem do mundo. Vive em estado letárgico, no primeiro degrau, e só ganha vida consciente
quando alguém galga a escadaria; ele então se coloca nos calcanhares do visitante e sobe prendendo-se nas bordas dos degraus
curvos e gastos pelos pés de gerações de peregrinos. E assim vai ele
ganhando forma e cor, mas só alcança sua forma perfeita no último degrau, quando quem sobe é
um ser elevado espiritualmente.
Quando não consegue se formar
totalmente, o a bao a qu sofre, e
sua queixa é um rumor quase imperceptível, como o roçar da seda.
Sua volta à vida é sempre muito
breve, pois, quando o peregrino
desce, ele cai para o degrau inicial, onde, já apagado e semelhante a uma lâmina de vagos
contornos, espera pelo próximo
visitante.
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