São Paulo, sexta-feira, 30 de março de 2001

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A história da música brasileira contada pelas capas

Referências sexuais e afronta às determinações do regime militar dominam a arte das capas vencedoras da enquete, como "Todos os Olhos", de Tom Zé, e "Índia", de Gal Costa, ambas lançadas em 1973

DA REPORTAGEM LOCAL

Se o exame da evolução da história das capas de discos pode por si ajudar a compreender a história do próprio país, a enquete da Folha aponta para um culto de preferência pelo Brasil tropicalista e, especialmente, para as ousadias de natureza sexual e política cometidas por artistas da música no início dos anos 70.
Tom Zé, segundo lugar na pesquisa com "Todos os Olhos" (73), escondeu por quase 20 anos a informação de que era na verdade uma bolinha de gude acoplada a um ânus o olho que enfeitava a capa do LP que, segundo ele, o remeteu ao ostracismo, até que o gringo David Byrne o resgatasse.
"Amigos se divertiam: "Vi o cu na vitrine em plena praça da República!'", ri Tom Zé. "Aparecia gente desconfiada às vezes, mas refutávamos com veemência."
A verdade só veio à tona assumidamente quando Byrne mencionou a história em texto do encarte da coletânea do artista que produziu no início dos 90.
A atitude política estava por trás: "Havia a discussão entre nós de que o Brasil estava um cu, de que aquilo era a cara do Brasil".
Mas... de quem era o "olho"? "Não cheguei a conhecer pessoalmente a moça. Hoje incentivo a criatura que posou, mesmo que tenha netos, a se apresentar. A exibição comercial do cu, que poderia ser moralmente duvidosa, hoje é até patriótica", graceja.
Gal Costa, gravando novo disco, não falou à Folha sobre "Índia", mas seus fãs não economizam recordações: "Eu tinha 10 anos e só fui conhecer a capa muitos anos depois, porque o meu pai a havia queimado", dá o clima o diretor teatral Ivam Cabral.
O jornalista Alvaro Machado viu o show e distende a memória sobre a subversão cometida então pela baiana: "O público ficava abaixo do nível do palco e via o tempo todo a imagem da capa, em versão ao vivo. Mas sob a saia de palha dela não havia tanga".
Os antecedentes para tanta transgressão estavam na capa-manifesto do disco-manifesto do movimento que iria mudar o curso da história da música popular (e pop). "Tropicália ou Panis et Circensis" (68) misturava referências a "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" (67), dos Beatles, a irônicos tons de verde-e-amarelo e símbolos nacionais.
O grupo que participa do LP coletivo está todo reunido -Nara Leão e Capinan só por fotografia, porque não estavam ao alcance da casa-estúdio paulistana na av. Brasil, onde foi feita a sessão.
"Essa capa saiu graças ao fotógrafo Olivier Perroit e ao empresário Guilherme Araújo, que teve a coragem de trazer essa novidade ousada para a época: não havia artista bonitinho posando para a foto da capa", lembra o maestro tropicalista Rogério Duprat.
O desbunde sexual ainda não chegara à embalagem, o que atesta o figurino brejeiro de Rita Lee, então um dos três Mutantes: "Escolhi um xale verde de tricô da minha avó". Na manhã seguinte, o Brasil acordou tropicalista.
Tropicalismo acabado em AI-5, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram para Londres em 69. De lá Caetano preparou "Transa", que marcou sua volta do exílio e fecha o clube das cinco melhores capas.
Mais que pela aparência ou pelas cores da capa plana, "Transa" impressionou pelo conceito concretista e pelo formato espacial. "Expresso 2222" (também de 72), de Gil, completava a idéia, transformando-se em um círculo gigante pela abertura de suas abas.
O preto sobre vermelho de "Transa" alegorizava, intimidado, o regime militar. O Brasil seguia aos tropeços, negro e sanguinolento. E as capas de discos contavam tudo. (LÚCIO RIBEIRO e PEDRO ALEXANDRE SANCHES)

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