São Paulo, sexta-feira, 30 de março de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

Da mágica e necessária influência dos nomes

Acordei, dia desses, cismado com o meu próprio nome. Já me aconteceu cismar com a minha cara, acho que isso pode acontecer com qualquer um. Mas estranhar o próprio nome deve ser mais raro, pois há o recurso de abreviá-lo, mudá-lo e até mesmo substituí-lo por uma sigla ou um número, como FHC, ACM. Houve um ponta-direita do Fluminense que se chamava 109, antes de James Bond virar 007.
Os judeus ortodoxos têm tanto respeito pelo nome que se recusam a chamar Jeová de Jeová, usam um anagrama complicado, que é mais ou menos parecido com Javé, mas não chega a ser isso. Conheci alguns que não pronunciavam o nome de Deus, em vão ou a propósito. E, quando obrigados a escrever o seu Santo Nome, escreviam D'us -para evitar a profanação de mencioná-lo em papéis profanos.
Picasso se chamava Pablo Diego José Francesco de Paula Juan Nepomuceno Maria de los Remedios Cipriano de la Santissima Trindad Ruiz y Picasso. Era nome pra burro. Outro que tinha nome complicado era Olavo Bilac, cujo nome completo (Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac) formava um alexandrino perfeito. Reis e mágicos de circo também costumam ter nomes compridos: no caso dos reis, para exibir a linhagem; no caso dos mágicos, para coisa nenhuma, pois eles acabam se apresentando como o Grande Ivã ou o Grande Arthur.
Conheci um desses mágicos cuja principal mágica era ele próprio, pois uns o diziam chinês, outros romeno, e ele não era nem chinês nem romeno, mas vagamente pernambucano, de Garanhuns, parece.
Li não sei onde que outro mágico, este natural de Astúrias, guilhotinado por equívoco durante a ditadura de Robespierre, se chamava José de la Cruz y Rios Paloma de la Anunción Cabrera y Portos y Barrios de la Madre del Cautivero Xavier de Cuencas y Toros y Toros. Reduziu tudo isso para um charmoso José Balsamo, que, segundo alguns, era o próprio Cagliostro; segundo outros, era coisa nenhuma, não passando de uma invenção de Alexandre Dumas, que o aproveitou para personagem de sua monumental história da Revolução Francesa, que ele preferiu chamar de ""Memórias de um Médico".
(Parênteses: um professor francês, natural de Nantes, suicidou-se após servir de guia durante 20 anos na Conciergerie, que foi palácio real e depois prisão do Estado durante a revolução. Motivo do suicídio: todos os turistas que visitavam a cela de Maria Antonieta conheciam história melhor do que ele, pois haviam lido Alexandre Dumas, e ele se recusava a ler um autor de segundo time.)
Esse tal de José Balsamo não foi o primeiro nem o último a mudar de nome. Nero chamava-se Lucio Domizio Enobardi, e o Silvio Santos chama-se Senor Abravanel. Santo Antônio chamava-se Fernando, e o poeta Drummond achava que não adiantava mudar de nome: se se chamasse Raimundo, seria uma rima para o vasto mundo, não uma solução.
Com todos esses exemplos, nunca pensei seriamente em mudar de nome, mas, outro dia, cismei que devia me chamar Rodolpho, com "ph", como os amantes dos romances de capa-e-espada, ou Arnaldo, como os portugueses que escapam de ser Manuel ou Joaquim.
Acredito que se deva dar aos que nascem um nome provisório, alfanumérico, como as placas de automóvel e os quarteirões de Brasília. Ao atingir a maioridade, o interessado escolheria o nome que quisesse, que julgasse mais apropriado a seu gosto e a suas necessidades.
A lei dos países civilizados, como o nosso, permite a troca de nome, mas dá um trabalhão ir ao Registro Civil, explicar o porquê da mudança, alterar escrituras e comunicar aos interessados que, a partir de certa data, fulano de tal não é mais fulano, mas sicrano, desde que não seja beltrano, como uma emissora de rádio da Argentina que tem esse nome.
Houve um instante, na vida nacional, em que ficou em moda trocar o nome por motivos esotéricos, creditando à numerologia poderes de prever o futuro e melhorar o passado. Sinceramente, não acredito nessa mágica. De minha parte, acho que o nome da gente deveria ter aquilo que os dicionários chamam de ""apodo", ou seja, uma espécie de apelido que nos definisse, ou, ao menos, nos explicasse.
Pepino, o Breve, por exemplo. Nem sei por que Pepino foi breve nem por que houve um Pepino, o Grosso. Maria, a Louca, é um bom exemplo de como se devia chamar uma personagem como ela. E dom Manuel, o Venturoso, é mais explícito do que um simples algarismo romano.
Houve tempo, aqui no Rio, em que ficou popular um torneio de luta livre. Todos os lutadores eram definidos e explicados pelo próprio nome. Um armênio era Karadajian, o Sujo. E um conde, parece que da Bielo-Rússia, era Norvina, o Guapo.
Eu nunca tinha ouvido falar nesse nome, ""guapo". Pensei que fosse alguma coisa obscena, pois diziam que esse conde não era conde nem Norvina, mas um gay enrustido.
Foi pensando nisso tudo, nos Pepinos grossos e breves, nas Marias loucas, nos armênios sujos e nos condes guapos, que me conformei com o próprio nome e decidi aceitá-lo com humildade, mas com um pouco de vergonha.



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