|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERREIRA GULLAR
Uma questão teológica
Pode-se admitir que, numa célula, menor que uma cabeça de alfinete, já esteja um ser humano?
|
VOU METER minha colher torta
num assunto complicado: o
problema das células-tronco
embrionárias, cuja utilização para
fins médicos é contestado pela Igreja Católica. Como se sabe, a Lei de
Biodiversidade -que libera o uso
daquelas células pelos cientistas,
aprovada pelo Congresso Nacional e
sancionada pelo presidente Lula-
foi considerada inconstitucional pela Procuradoria Geral da República
e está em julgamento no Supremo
Tribunal Federal.
A alegação da procuradoria é que a
Lei de Biodiversidade fere dispositivo constitucional, que garante a preservação da vida humana. Então, estabeleceu-se a seguinte discussão:
pode-se admitir que, numa célula,
menor que uma cabeça de alfinete,
já esteja o indivíduo humano, detentor do direito constitucional? A
Igreja diz que sim, alegando que a vida começa com a fecundação do
óvulo, enquanto os cientistas afirmam que o indivíduo só começa de
fato quando se formam o cérebro e o
sistema nervoso. A verdade é que, se
se pode afirmar que a vida humana
começa com a fecundação, pode-se
também admitir que começa antes,
no espermatozóide e no óvulo, uma
vez que os elementos que constituirão o feto já estão neles. É uma discussão sem fim.
Mas os defensores da utilização
científica de células-tronco embrionárias levantam um argumento a
que a Igreja responde com dificuldade: por que defender a preservação
de um embrião, alegando que já está
ali em potencial o indivíduo humano, mesmo sabendo que, com isso,
prejudicará um vasto número de
pessoas, cujas graves doenças poderiam ser curadas graças àqueles procedimentos científicos? Quando o
STF iniciou o julgamento da ação de
inconstitucionalidade, estavam ali
presentes muitas pessoas inválidas
em cadeiras de rodas. Como ignorar
o sofrimento delas em nome de uma
simples tese?
A resposta a essa pergunta é a seguinte: a Igreja não tem alternativa,
porque o que está em jogo é seu dogma fundamental, a crença do pecado
original, que levou Santo Agostinho
à seguinte reflexão: se a criança, ao
nascer, já traz consigo o pecado original, deve-se concluir que o ato sexual engendra, não apenas o corpo,
mas a alma também, pois o pecado é
da alma.. Daí a tese de que o ser humano começa com a fecundação,
pois a presença da alma no embrião
independe de já haver ou não, ali, cérebro e sistema nervoso. O que está
presente, nele, desde o primeiro momento, é a alma. Não se trata, portanto, de uma questão biológica,
mas teológica.
Os defensores da posição católica
repelem qualquer aproximação da
atitude atual da Igreja com a que
adotara durante a Inquisição. De fato, não há hoje a menor possibilidade de algum ímpio ser levado à fogueira, nem a Igreja pensa nisso. A
semelhança entre os dois casos está
na prevalência do dogma sobre
qualquer outro valor: livrar a alma
do pecado, que, no passado, justificou a tortura e o sacrifício do pecador, hoje justificaria a proibição das
pesquisas com células-tronco embrionárias, quaisquer que sejam as
conseqüências para a vida de tanta
gente, pois o que importa é salvar a
alma que, como supôs Santo Agostinho, já estaria no embrião. Essa foi a
explicação que ele encontrou para
justificar a tese de que já nascemos
infectados pelo pecado.
A noção do pecado original é tão
essencial à Igreja que Jesus teve que
ser concebido por mãe virgem, fecundada pelo Espírito Santo. Mas,
como a condenação do ato sexual levava a um impasse, pois a proibição
do coito determinaria o fim da espécie humana, a saída foi abençoá-lo
pelo casamento e eliminar o pecado
pelo batismo. E se o bebê morre, ao
nascer, sem ser batizado, queimará
eternamente no fogo do inferno? É
duro de aceitar.
É essa mesma visão dogmática do
sexo que leva a Igreja, hoje, a proibir
o uso da camisinha: o ato sexual só se
justificaria quando praticado com o
objetivo de procriar e, como o uso da
camisinha, impedindo a fecundação, implica a prática do sexo por
mero prazer, leva ao pecado e à perdição da alma. Logo, transar com camisinha não é permitido, ainda que
disso resulte a morte de milhões de
pessoas pela Aids. Tem lógica! Mas
isso não nos fará ignorar o extraordinário trabalho da Igreja, dando
amparo e sentido à vida de muitos
milhões de pessoas também.
Sucede que, no caso das células-tronco, a fecundação é feita num tubo de ensaio, excluindo, portanto, a
relação sexual, que engendraria a alma e o pecado original. Logo, para
Santo Agostinho, na célula-tronco
embrionária, fecundada sem pecado, não estaria a alma. Tem lógica
também.
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Música erudita: Orquestra experimental recebe Dmitri Berlinsky Índice
|