São Paulo, segunda, 30 de março de 1998

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O século pergunta mais do que 68 pode responder

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha


Dois debates na Europa, um na França, outro na Alemanha. Documentos da polícia sobre o movimento estudantil foram publicados pela revista "L'Express", mostrando que se esteve muito perto de uma tragédia. E com isso se começa a discutir os 30 anos de maio de 68.
Um seminário em Berlim, com a presença de Henry Kissinger e Helmut Kohl, indaga sobre a liderança intelectual no século 21. Parece que há um consenso sobre a importância do produto cultural e também uma certa apreensão com a hegemonia quase absoluta dos Estados Unidos.
Acompanhei pelos jornais o debate na Alemanha. Pelo que vi, houve intervenções que, mesmo sem colocar em questão a hegemonia americana, lamentavam a qualidade do material: violência, vulgaridade, paranóia.
No entanto se via que os próprios alemães gostariam de se associar aos norte-americanos para desfrutar uma pequena fatia de um mercado mundial ávido de lazer e cultura, dispondo de mais tempo livre.
A estratégia de associação é razoável, desde que não seja a única, pois a universalização do estilo norte-americano pode reduzir o mundo cultural à monotonia e tristeza. Outra coisa é combinar as associações, seja com americanos ou com pretensos rivais, com a tentativa de criar um espaço próprio que garanta um nicho no mercado mundial e o mínimo de diversidade, sem a qual a própria vida inteligente no planeta fica ameaçada.
Em Toulouse, à margem do debate alemão, converso com o amigo José Carlos Avelar, diretor da Rio Filmes. Ele é um dos grandes abnegados do cinema brasileiro, mas também aberto a associações. Costura uma com os franceses, parceiros que vivem um pouco nosso dilema -perecer ou sobreviver com um olhar diferente do hegemônico.
Ao longo da conversa, vou me dando conta da importância do seminário alemão e de como, em termos de política cultural, ainda nos falta no Brasil compreender a dimensão econômica estratégica que o setor ocupará no século 21.
Os Estados Unidos saltaram na frente com o avanço da informática. Independente de seu poder econômico, isso já é um trunfo decisivo para o predomínio do inglês, quase que absoluto na Internet.
No entanto nem todos os dados sobre a liderança intelectual no século 21 estão definidos. Há o que fazer nacionalmente, há políticas de aliança que precisam ser definidas, e é razoável que o Brasil pegue uma carona nesse debate.
Que ela se trave no momento em que se comemoram os 30 anos de Maio de 68 é apenas uma coincidência. Mas se voltarmos atrás, as palavras de ordem que se pintavam nos muros de Paris, veremos que há um diálogo possível entre o sonho luminoso e a áspera realidade do fim do século.
"É proibido proibir" era um dos slogans mais comuns. Hoje o espaço da Internet é aquele onde se realizou mais amplamente essa aspiração anárquica. O mundo digital inviabilizou a censura. A imaginação no poder, por exemplo, não teve grande sucesso entre governos. Mas a própria revolução digital, partindo de empresas de fundo de garagem, revela como a capacidade criativa tem peso no desenvolvimento econômico e como o fator inteligência passará a ser considerado o aspecto mais importante do capital.
Seria demais pedir que 68 desse todas as respostas para os problemas do século 21. Ou mesmo que contivesse todas as perguntas adequadas. O que se pode afirmar, ao unirmos os dois debates, é que há uma possibilidade de diálogo entre ambos e que por baixo da expressão "supremacia cultural" está uma grande questão econômica emergente.
Em mesa redonda em Paris, tive a oportunidade de enfatizar dois trunfos brasileiros para o século 21: a biodiversidade e nossa capacidade para a produção audiovisual. É incômodo falar de biodiversidade com a Amazônia em chamas, mas não há dúvida que poderemos tirar partido disso no século 21: temos a vida e temos o conhecimento dos nativos sobre suas manifestações.
No campo do audiovisual, reconheço que há um desequilíbrio entre a capacidade de ler e de ver do povo brasileiro, conquistado pela televisão. Mas isso abrirá caminhos no momento em que televisão, computador e telefone se fundirem.
Aparentemente mais aberto à informática que os próprios europeus, teremos mais produtores de vídeo, mais comunidades debatendo seus problemas e, em termos técnicos, estaremos mais preparados para a democracia direta.
É uma pena que os sonhos de 68 não tenham encontrado a revolução digital, a não ser na subjetividade isolada de alguns sobreviventes. Não se trata de substituir um pelo outro, trata-se apenas de um espetacular divórcio no tempo entre sonhos e condições materiais de realizá-los. É apenas mais um desses divórcios que são produzidos pela própria capacidade humana de sonhar. Há quem ache que a história acabou; há quem ache que a história de grandes mudanças acabou em 68. O debate sobre o próximo século é bom antídoto para esse pessimismo, embora em termos culturais não se pode dizer que as perspectivas sejam particularmente animadoras. Isso tem a ver com o avanço da democracia, mas é a história de outro confronto entre sonho e realidade. Fica para a próxima semana.



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