São Paulo, Terça-feira, 30 de Março de 1999
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ARNALDO JABOR
O grande filme foi a própria festa do Oscar

A festa do Oscar foi a maquete perfeita da América de hoje. Tudo muito instrutivo. Naquele palco pisavam os peões desta fase "global" da América: Whoopi Goldberg (negra com nome judeu?), Harry Weinstein, o voraz dono da Miramax, Colin Powell, o afro-comandante, John Glenn, o velhinho voador, e Elia Kazan, o anticomunista perdoado.
Havia também personagens secundários: Gwyneth Paltrow, mais para Ofélia que para Julieta, Roberto Benigni, a perereca italiana, junto da Sophia Loren, a loba romana com seus 12 seios e três bocas, e até nós, os esperançosos-periféricos Waltinho e Fernanda, esquecidos pelos cameramen do pavilhão.
O resto eram sorrisos faiscantes, bustos dourados e, aqui, do outro lado da tela, a população do Nordeste, faminta, analfabeta, rezando com velas na mão para Padinho Ciço nos dar o Oscar. Esse foi o grande filme que vimos outro dia.
Whoopi é a anti-Butterfly Macqueen de fim-de-século, a anti-babá do "E o Vento Levou" (se bem que é uma das estrelas do multiculturalismo careta aceito por Hollywood).
Se o negrinho americano da era do jazz ou da velha indústria se contorcia em macaquices e olhos arregalados, no escracho da sua negritude, nos remelexos pós-escravidão, visíveis até em gênios como Louis Armstrong, Whoopi foi, na festa, a cômica autoflagelante da própria feiúra, mas com laivos de deboche também contra a cultura "branca", desfilando caricaturas e piadas "privadas" sempre à beira de uma gafe.
Ela faz parte da elite do negro "bem-sucedido", categoria importante nos EUA -o negro se pintando de branco, faiscante de paetês, ganhando rios de grana, tipo Mariah Carey, Whitney Houston ou Oprah Winfrey. Ninguém precisa ser pantera negra para sempre, mas não há nada mais chato do que "negro de mercado". O Brasil está cheio deles, todos pagodeiros, destruindo o samba, a pastorear brancas bundudas que rebolam em volta das garrafas.
Outro personagem desse filme é o gordo Harry Miramax Weinstein, galgando o palco pálido de triunfo. Weinstein consegue o milagre da união do "mainstream" com o "underground", consegue vender a rebeldia "de consumo", por meio do marketing, para equalizar as diferenças.
A indústria do filme independente está cada vez mais dependente, o Festival de Sundance está cada vez mais cheio de executivos do "big money" caçando jovens de talento, para liofilizá-los e fazê-los "vender" ("A gente dá um banho neles, obriga a umas regras de roteiro e pronto..." ). Harr y agora é o braço "art y" da Disney e emplacou o melhor filme para o apenas simpático "Shakespeare Apaixonado", liofilizado pela cara de burro do ator que faz o bardo.
Descendo do céu, surge outra figura desse filme, o "Armageddon da Arte", John Glenn, o astronauta virtual, o herói da terceira idade. Glenn subiu e desceu em órbita há pouco tempo, gastou milhões da Nasa para ser ancião-propaganda do programa espacial e para vender ao mundo a idéia da força de vontade, da eterna juventude americana. Até onde iremos nesse show de narcisismo e triunfo que os vencedores mostram ao mundo, enquanto os nossos miseráveis rezam com velas no Nordeste?
Outra cena luminosa foi o julgamento ao vivo de Elia Kazan para a platéia do mundo. Foi um Tribunal McCarthy light, dourado, perfumado, dividindo o público entre "democráticos" que perdoam e radicais "incorruptíveis" de braços cruzados e cara feia, como fez o Nick Nolte -por acaso não premiado.
No centro, o velhinho de 90 anos, trêmulo, sabujo, expondo-se ao planeta, em busca de um meio-perdão para morrer meio feliz ao menos.
A cena foi de tontear. Um dos maiores diretores do século estava ali, servindo, mais uma vez, à América conservadora. Não era o perdão ou a condenação que estavam em jogo. Tratava-se de desconstituir o passado.
Não há mais comunismo, logo não há mais crime; não há mais esquerda e direita, não há mais nada -só o grande lago manso e morno da América corporativa.
Os que não aplaudiram ficaram parecendo vagamente antipáticos, intolerantes, "delatores" de Kazan.
E os que apoiaram o gênio mau-caráter tinham ares de "comprados" pelo sistema, enquanto Kazan sorria, tonto, com o Scorsese fazendo o "ato falho" de se esconder atrás do mau velhinho, enquanto o Kazan dizia como um fugitivo: "Já posso sair de fininho?".
Aí entra em cena o general Colin Powell, militar negro e republicano, a mistura ideal, como Whoopi, negro integrado ao poder. "Negro digno, não-pernóstico", como dizia minha avó, um "negro de alma branca", fazendo o elogio dos filmes de guerra, que eram aliás os melhores da noite: os filmes de Spielberg ("Ryan") e de Terrence Malick ("Além da Linha Vermelha").
Colin foi apresentado pelo general-comandante do cinema, o Jack Valenti, com sua cara de Dick Tracy, de George Wallace. Falou o afro-general Powell em "luta pela democracia" (leia "mercado aberto"), a dois dias de a Otan começar o bombardeio na Iugoslávia.
Ficou claro que cinema é guerra de conquista, como bem sabe o Valenti, assim como "guerra" é, hoje, um cinema luminoso, virtual, asséptico, sem envolver os jovens americanos na refrega torpe, como mostravam os filmes antigos.
E tivemos os coadjuvantes: a nossa Sophia Loren, que trouxe as cartas marcadas do Benigni. Tivemos a lourinha melhor atriz, chorando, numa volta aos anos 40, quando a histeria republicana fazia sucesso. E, por último, pisando nos corpos de Rosselini, Visconti, Antonioni e Fellini, o bufão colonizado Benigni, o retrato de como os EUA querem ver a Europa: aberta, sabuja, superficial.
O quadro da América global foi completo. O nacionalismo virou uma heresia de idiotas. A vitória é total.
É sinistro? Nem tanto. Não há mais o velho Tio Sam invasor, cobiçoso. Tudo vem sob a capa simpática da democracia e do progresso, da brincadeira e do riso.
É um império simpático, vendendo igualdade, liberdade, desde que, claro, não nos desenvolvamos muito, a ponto de prejudicar seus interesses mercantis. "That's entertainment!"


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