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ARNALDO JABOR
O grande filme foi a própria festa do Oscar
A festa do Oscar foi a maquete
perfeita da América de hoje.
Tudo muito instrutivo. Naquele palco pisavam os peões desta
fase "global" da América:
Whoopi Goldberg (negra com
nome judeu?), Harry Weinstein, o voraz dono da Miramax, Colin Powell, o afro-comandante, John Glenn, o velhinho voador, e Elia Kazan, o anticomunista perdoado.
Havia também personagens
secundários: Gwyneth Paltrow,
mais para Ofélia que para Julieta, Roberto Benigni, a perereca italiana, junto da Sophia
Loren, a loba romana com seus
12 seios e três bocas, e até nós,
os esperançosos-periféricos
Waltinho e Fernanda, esquecidos pelos cameramen do pavilhão.
O resto eram sorrisos faiscantes, bustos dourados e, aqui, do
outro lado da tela, a população
do Nordeste, faminta, analfabeta, rezando com velas na
mão para Padinho Ciço nos
dar o Oscar. Esse foi o grande
filme que vimos outro dia.
Whoopi é a anti-Butterfly
Macqueen de fim-de-século, a
anti-babá do "E o Vento Levou" (se bem que é uma das estrelas do multiculturalismo careta aceito por Hollywood).
Se o negrinho americano da
era do jazz ou da velha indústria se contorcia em macaquices e olhos arregalados, no escracho da sua negritude, nos
remelexos pós-escravidão, visíveis até em gênios como Louis
Armstrong, Whoopi foi, na festa, a cômica autoflagelante da
própria feiúra, mas com laivos
de deboche também contra a
cultura "branca", desfilando
caricaturas e piadas "privadas" sempre à beira de uma gafe.
Ela faz parte da elite do negro
"bem-sucedido", categoria importante nos EUA -o negro se
pintando de branco, faiscante
de paetês, ganhando rios de
grana, tipo Mariah Carey,
Whitney Houston ou Oprah
Winfrey. Ninguém precisa ser
pantera negra para sempre,
mas não há nada mais chato
do que "negro de mercado". O
Brasil está cheio deles, todos
pagodeiros, destruindo o samba, a pastorear brancas bundudas que rebolam em volta das
garrafas.
Outro personagem desse filme é o gordo Harry Miramax
Weinstein, galgando o palco
pálido de triunfo. Weinstein
consegue o milagre da união do
"mainstream" com o "underground", consegue vender a rebeldia "de consumo", por meio
do marketing, para equalizar
as diferenças.
A indústria do filme independente está cada vez mais dependente, o Festival de Sundance está cada vez mais cheio
de executivos do "big money"
caçando jovens de talento, para liofilizá-los e fazê-los "vender" ("A gente dá um banho
neles, obriga a umas regras de roteiro e pronto..." ). Harr y agora é o
braço "art y" da Disney
e emplacou o melhor
filme para o apenas
simpático "Shakespeare Apaixonado", liofilizado pela cara de
burro do ator que
faz o bardo.
Descendo do céu,
surge outra figura
desse filme, o "Armageddon da Arte", John
Glenn, o astronauta
virtual, o herói da terceira idade. Glenn subiu
e desceu em órbita há
pouco tempo, gastou milhões da Nasa para ser
ancião-propaganda do
programa espacial e para
vender ao mundo a idéia
da força de vontade, da
eterna juventude americana. Até onde iremos
nesse show de narcisismo
e triunfo que os vencedores mostram ao mundo,
enquanto os nossos
miseráveis rezam
com velas no Nordeste?
Outra cena luminosa foi o julgamento ao vivo
de Elia Kazan
para a platéia
do mundo. Foi
um Tribunal
McCarthy
light, dourado,
perfumado, dividindo o público
entre "democráticos" que perdoam
e radicais "incorruptíveis" de braços cruzados e cara feia, como fez o Nick Nolte
-por acaso não premiado.
No centro, o velhinho de 90 anos, trêmulo, sabujo, expondo-se
ao planeta, em busca
de um meio-perdão
para morrer meio feliz
ao menos.
A cena foi de tontear. Um dos
maiores diretores do século estava ali, servindo, mais uma
vez, à América conservadora.
Não era o perdão ou a condenação que estavam em jogo.
Tratava-se de desconstituir o
passado.
Não há mais comunismo, logo não há mais crime; não há
mais esquerda e direita, não há
mais nada -só o grande lago
manso e morno da América
corporativa.
Os que não aplaudiram ficaram parecendo vagamente antipáticos, intolerantes, "delatores" de Kazan.
E os que apoiaram o gênio
mau-caráter tinham ares de
"comprados" pelo sistema, enquanto Kazan sorria, tonto,
com o Scorsese fazendo o "ato
falho" de se esconder atrás do
mau velhinho, enquanto o Kazan dizia como um fugitivo:
"Já posso sair de fininho?".
Aí entra em cena o general
Colin Powell, militar negro e
republicano, a mistura ideal,
como Whoopi, negro integrado
ao poder. "Negro digno, não-pernóstico", como dizia minha
avó, um "negro de alma branca", fazendo o elogio dos filmes
de guerra, que eram aliás os
melhores da noite: os filmes de
Spielberg ("Ryan") e de Terrence Malick ("Além da Linha
Vermelha").
Colin foi apresentado pelo general-comandante do cinema,
o Jack Valenti, com sua cara de
Dick Tracy, de George Wallace.
Falou o afro-general Powell em
"luta pela democracia" (leia
"mercado aberto"), a dois dias
de a Otan começar o bombardeio na Iugoslávia.
Ficou claro que cinema é
guerra de conquista, como bem
sabe o Valenti, assim como
"guerra" é, hoje, um cinema luminoso, virtual, asséptico, sem
envolver os jovens americanos
na refrega torpe, como mostravam os filmes antigos.
E tivemos os coadjuvantes: a
nossa Sophia Loren, que trouxe
as cartas marcadas do Benigni.
Tivemos a lourinha melhor
atriz, chorando, numa volta
aos anos 40, quando a histeria
republicana fazia sucesso. E,
por último, pisando nos corpos
de Rosselini, Visconti, Antonioni e Fellini, o bufão colonizado Benigni, o retrato de como os EUA querem ver a Europa: aberta, sabuja, superficial.
O quadro da América global
foi completo. O nacionalismo
virou uma heresia de idiotas. A
vitória é total.
É sinistro? Nem tanto. Não há
mais o velho Tio Sam invasor,
cobiçoso. Tudo vem sob a capa
simpática da democracia e do
progresso, da brincadeira e do
riso.
É um império simpático, vendendo igualdade, liberdade,
desde que, claro, não nos desenvolvamos muito, a ponto de
prejudicar seus interesses mercantis. "That's entertainment!"
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