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CARLOS HEITOR CONY
Nada é perfeito na vida e no cinema
Uma das comédias de Billy
Wilder, talvez a mais famosa, nem por isso a melhor, começa
ao som de um órgão sombrio, tocando música fúnebre numa capela mortuária. Um sujeito com
aspecto igualmente fúnebre entra, recebe uma senha e, entre coroas de flores e círios acesos, dirige-se a uma porta, atrás da qual,
presumidamente, se realiza o velório. Um mordomo vestido como
um papa-defuntos abre a porta, e
o sujeito entra numa boate onde
dançam freneticamente o charleston, música em moda nos anos
loucos da lei seca. Garotas de programa, bêbados em diversos estágios, gângsteres de polainas brancas jogando moedinhas no ar, todos estão embaladíssimos naquele clima onde alguns ganham a
vida e outros se divertem.
Chega a polícia, e tudo começa
na base do quanto mais quente
melhor. Alguns são presos, a
maioria consegue fugir, evidente
que alguém traiu alguém, e a justiça é feita logo em seguida, numa
garagem, no Dia de São Valentim, os traídos matando os traidores.
Com pequenas e grandes variantes na história, ela se repete
com monotonia em várias partes
do mundo onde alguma coisa de
largo consumo é proibida. No caso em questão, a do filme de Billy
Wilder, a lei seca proibia a fabricação, a venda e o consumo da
bebida alcoólica, lei que, apesar
de revogada, não impediu que
continuasse a haver crimes, mas
em escala menor.
Esse argumento continua sendo
lembrado sempre que se pensa em
diminuir a criminalidade que envolve a droga, o seu tráfico, seus
traficantes e usuários: "Sublata
causa, tollitur effectus" -diriam
os latinos. Não havendo crime,
não haveria criminosos. Pessoalmente, sou favorável à descriminalização da droga, desde que ela
não seja invocada para justificar
o comportamento criminoso ou
anti-social de quem quer que seja,
fabricante, traficante ou usuário.
Se alguém comete um delito,
grave ou não, um homicídio ou
uma batida de carros, o fato de
estar sob efeito de qualquer droga
deve servir até de agravante, e
nunca de atenuante. Agora, o seu
uso normal, tal como o cigarro e o
álcool, não deveria constituir crime em si, embora cabendo às autoridades médicas, policiais, familiares e religiosas a advertência
dos males que a droga pode trazer
para a saúde individual e, em alguns casos, para a sociedade em
geral. Exatamente como o álcool
e o fumo.
Uma das coisas que me causam
pasmo cada vez maior é saber que
a droga é o maior negócio do
mundo depois do petróleo, das
guerras e da informática. Contudo todos conhecemos os magnatas que se beneficiam de uma coisa ou outra, os Bushs, os Rockfellers, os Bill Gates. Fica difícil colocar os Fernandinhos Beira-Mar, os Lulus e Dudus de nossas
favelas no mesmo ranking dos
presidentes dos Estados Unidos,
da Standard Oil ou da Microsoft.
O fabuloso lucro da droga é
continuamente lavado numa
operação que transcende ao banditismo artesanal dos traficantes
que formam o escalão visível do
crime organizado, que só é organizado na medida em que o Estado, por ação ou omissão garantindo o funcionamento do negócio em alta escala, mantém a
grande rede submersa que fica
com a parte do leão e conhece os
roteiros não para legalizar a droga -legalização que não lhe interessa-, mas para legalizar o
dinheiro obtido no varejo.
Compreende-se a reação de poderosas forças sociais que se negam a admitir a descriminalização da droga. O ideal, numa sociedade ideal, é que a vida fosse
melhor para todos em todos os
sentidos, não sendo necessárias as
muletas químicas e psicológicas
que ajudam alguns a enfrentar a
dura barra que, de uma forma ou
outra, todos enfrentamos.
Contudo o problema da droga,
sem mudar de gênero, mudou de
grau. Encabeça hoje todas as pesquisas técnicas e amadoras sobre
a principal causa da violência nas
grandes cidades, não apenas dos
países periféricos, mas do próprio
núcleo dos Estados mais desenvolvidos.
E aqui a questão se bifurca num
dos atalhos mais nefastos do cotidiano mundial, que é o financiamento das campanhas eleitorais
que tanto elegem um presidente
dos EUA como um vereador da
baixada santista. De alguma fonte devem sair os milhões que são
gastos em cada campanha, tanto
na contabilidade oficial como na
clandestina. Vez por outra, estoura um escândalo pequenino, envolvendo um bagrinho ou um laranja, na base da modesta comissão de 1%, como em recente caso
que conhecemos.
Descriminalizar a droga é uma
saída, embora não seja perfeita
do ponto de vista moral e operacional. Mas já que começamos este artigo citando o começo de
uma comédia de Billy Wilder, devemos lembrar o antológico final
do mesmo filme, quando aquele
milionário se casa com a mulher
que deseja e, ao saber que ela é
um homem, com cara sacana declara que nada é perfeito neste
mundo.
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