São Paulo, sexta-feira, 30 de abril de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Nada é perfeito na vida e no cinema

Uma das comédias de Billy Wilder, talvez a mais famosa, nem por isso a melhor, começa ao som de um órgão sombrio, tocando música fúnebre numa capela mortuária. Um sujeito com aspecto igualmente fúnebre entra, recebe uma senha e, entre coroas de flores e círios acesos, dirige-se a uma porta, atrás da qual, presumidamente, se realiza o velório. Um mordomo vestido como um papa-defuntos abre a porta, e o sujeito entra numa boate onde dançam freneticamente o charleston, música em moda nos anos loucos da lei seca. Garotas de programa, bêbados em diversos estágios, gângsteres de polainas brancas jogando moedinhas no ar, todos estão embaladíssimos naquele clima onde alguns ganham a vida e outros se divertem.
Chega a polícia, e tudo começa na base do quanto mais quente melhor. Alguns são presos, a maioria consegue fugir, evidente que alguém traiu alguém, e a justiça é feita logo em seguida, numa garagem, no Dia de São Valentim, os traídos matando os traidores.
Com pequenas e grandes variantes na história, ela se repete com monotonia em várias partes do mundo onde alguma coisa de largo consumo é proibida. No caso em questão, a do filme de Billy Wilder, a lei seca proibia a fabricação, a venda e o consumo da bebida alcoólica, lei que, apesar de revogada, não impediu que continuasse a haver crimes, mas em escala menor.
Esse argumento continua sendo lembrado sempre que se pensa em diminuir a criminalidade que envolve a droga, o seu tráfico, seus traficantes e usuários: "Sublata causa, tollitur effectus" -diriam os latinos. Não havendo crime, não haveria criminosos. Pessoalmente, sou favorável à descriminalização da droga, desde que ela não seja invocada para justificar o comportamento criminoso ou anti-social de quem quer que seja, fabricante, traficante ou usuário.
Se alguém comete um delito, grave ou não, um homicídio ou uma batida de carros, o fato de estar sob efeito de qualquer droga deve servir até de agravante, e nunca de atenuante. Agora, o seu uso normal, tal como o cigarro e o álcool, não deveria constituir crime em si, embora cabendo às autoridades médicas, policiais, familiares e religiosas a advertência dos males que a droga pode trazer para a saúde individual e, em alguns casos, para a sociedade em geral. Exatamente como o álcool e o fumo.
Uma das coisas que me causam pasmo cada vez maior é saber que a droga é o maior negócio do mundo depois do petróleo, das guerras e da informática. Contudo todos conhecemos os magnatas que se beneficiam de uma coisa ou outra, os Bushs, os Rockfellers, os Bill Gates. Fica difícil colocar os Fernandinhos Beira-Mar, os Lulus e Dudus de nossas favelas no mesmo ranking dos presidentes dos Estados Unidos, da Standard Oil ou da Microsoft.
O fabuloso lucro da droga é continuamente lavado numa operação que transcende ao banditismo artesanal dos traficantes que formam o escalão visível do crime organizado, que só é organizado na medida em que o Estado, por ação ou omissão garantindo o funcionamento do negócio em alta escala, mantém a grande rede submersa que fica com a parte do leão e conhece os roteiros não para legalizar a droga -legalização que não lhe interessa-, mas para legalizar o dinheiro obtido no varejo.
Compreende-se a reação de poderosas forças sociais que se negam a admitir a descriminalização da droga. O ideal, numa sociedade ideal, é que a vida fosse melhor para todos em todos os sentidos, não sendo necessárias as muletas químicas e psicológicas que ajudam alguns a enfrentar a dura barra que, de uma forma ou outra, todos enfrentamos.
Contudo o problema da droga, sem mudar de gênero, mudou de grau. Encabeça hoje todas as pesquisas técnicas e amadoras sobre a principal causa da violência nas grandes cidades, não apenas dos países periféricos, mas do próprio núcleo dos Estados mais desenvolvidos.
E aqui a questão se bifurca num dos atalhos mais nefastos do cotidiano mundial, que é o financiamento das campanhas eleitorais que tanto elegem um presidente dos EUA como um vereador da baixada santista. De alguma fonte devem sair os milhões que são gastos em cada campanha, tanto na contabilidade oficial como na clandestina. Vez por outra, estoura um escândalo pequenino, envolvendo um bagrinho ou um laranja, na base da modesta comissão de 1%, como em recente caso que conhecemos.
Descriminalizar a droga é uma saída, embora não seja perfeita do ponto de vista moral e operacional. Mas já que começamos este artigo citando o começo de uma comédia de Billy Wilder, devemos lembrar o antológico final do mesmo filme, quando aquele milionário se casa com a mulher que deseja e, ao saber que ela é um homem, com cara sacana declara que nada é perfeito neste mundo.


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