São Paulo, segunda-feira, 30 de abril de 2007

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GUILHERME WISNIK

Outra vez feto


Le Corbusier tem suas impressões do Oriente feitas aos 23 anos publicadas em "A Viagem do Oriente"

O TEMA é o luto. O narrador, aprendiz no ateliê de Peter Behrens, em Berlim, empreende uma viagem iniciática de sete meses pela região dos Bálcãs, Atenas e Istambul. Vai, é verdade, em busca do sol, da claridade mediterrânea, da beleza perene, atemporal. Mas encontra, sem que isso seja contraditório, uma civilização condenada à morte, repleta de túnicas escuras e vetustas, cortejos fúnebres, e acostumada a ver suas cidades de madeira se incendiarem, como vê acontecer tragicamente em Istambul. Era o ano do surto de cólera no Oriente, e ele acompanha mortos sendo transportados nas ruas, com os rostos verdes cobertos de moscas.
Mas não se trata apenas de mortes físicas. É a grandeza trágica daquela arquitetura e daquela paisagem que lhe provocam um misto de adoração e esmagamento, como o que sente em relação ao Partenon depois dos primeiros dias: "Já não gosto de ir até lá. Quando olho de longe, é como um cadáver. Acabou-se o enternecimento. É uma arte fatal da qual ninguém escapa. Glacial".
O autor do relato, então com 23 anos, é o jovem Charles-Edouard Jeanneret, cujas anotações de viagem permaneceriam inéditas até 1965, ano em que Le Corbusier (pseudônimo assumido mais tarde por ele) resolveria publicá-las, menos de um mês antes de morrer afogado em Cap-Martin, no Mediterrâneo. Lançado agora em português, "A Viagem do Oriente" (Cosacnaify, 216 págs., R$ 39) é, portanto, o primeiro e o último livro do arquiteto, descrevendo um arco de vida que se volta ao início quando chega ao final.
Jeanneret, em certo sentido, é o anti-Le Corbusier, um jovem cuja melancolia dubitativa está distante dos manifestos imperativos, das palavras de ordem a apontar direções de futuro. Na última página do livro, já em um Ocidente dominado por "estilos" duvidosos e afetados e nitidamente impactado por tudo o que viveu naquela longa travessia existencial, ele se pergunta o seguinte: "Por que nosso progresso é feio?". Mas consente: "Tenho 20 anos e não posso responder...". Conclusão que deixa o relato belamente suspenso, ecoando inquietações exclamadas em passagens anteriores do livro, como "não queremos morrer", ou "retornaremos, sim, à saúde dessa época", em referência ao respeito dos turcos diante da "presença das coisas".
Depois da Segunda Guerra, e sobretudo em suas últimas obras, Le Corbusier abandonou a crença na civilização maquinista e se voltou a uma simbolização tida por alguns como arcaizante. Renegava "dar a viver no claro e aberto", como diz em forma de queixa o poeta João Cabral de Melo Neto, e fechava-se na "capela útero, com confortos de matriz, outra vez feto", em referência à capela de Ronchamp (1950). A metáfora cai bem para o próprio arquiteto, que parecia reencontrar o Oriente da sua juventude, fora da pressão da modernização, da urgência do agora, do "espírito do tempo".
Para este último Jeanneret, vale o aforismo turco saborosamente descrito pelo jovem 54 anos antes: "Onde não há casas, há túmulos. Assim, a terra é sempre habitada".


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