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RÉPLICA
Texto de Gullar revela oportunismo da "crítica ficcional'
Em resposta a Ferreira Gullar, o artista Rubens Mano afirma que comentário recente de colunista sobre arte contemporânea é "raso e descompromissado'
RUBENS MANO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A relutância manifesta por
parte da crítica de arte no Brasil
em praticar um básico deslocamento em direção à produção
contemporânea, de muitas maneiras nos ajuda a entender,
mesmo sem explicar, as distorções "impressas" sobre a natureza das ações artísticas realizadas nas últimas décadas.
Mas enquanto até certo tempo tal aparato crítico nos brindava somente com um "falar
sem ver", agora verificamos
também o oportunismo da "crítica ficcional", segundo a qual,
se não é mais possível compreender as intenções do trabalho, cria-se outra realidade
em seu lugar para melhor acomodar a pronta vociferação.
Não costumo colocar a condição do artista à frente das
questões tratadas por sua arte.
Porém, ao citar gratuitamente
um projeto meu sem conhecê-lo, o texto escrito por Ferreira
Gullar (Ilustrada, 20/4) nos
informa um dos sintomas da
fragilidade dessa condição, e
permite comentar.
Contudo, esta resposta não
reage só à surpresa em ver proposições tão díspares (a do artista costarriquenho Guillermo
Vargas e o meu trabalho realizado para a Bienal de São Paulo) serem dispostas lado a lado,
como a pretenderem a mesma
operação; ou à dificuldade declarada por um crítico de arte
em aceitar -90 anos depois- o
gesto liberador de Duchamp;
mas por seu artigo exemplificar a existência de um contexto
específico e desvelar o principal motivo de sua aparição: a
falta de crítica da crítica.
Pois, se no Brasil houvesse
mínimas condições para um
freqüente exercício livre e público da crítica, como faz Gullar
em sua coluna, dificilmente haveria lugar para texto tão raso e
descompromissado.
Não pretendo defender a
proposta de Guillermo Vargas.
Entretanto, parece-me curioso
perceber que a operação criticada no artigo, a "autoridade"
do artista e da instituição em
facultar um estatuto a algo, é a
mesma praticada por Gullar
nas páginas da Folha -ao escrever qualquer coisa sem o
menor constrangimento.
Não fosse assim, onde mais
constataríamos a não-assimilação da "pós-vanguarda"? Ou a
idéia de que a arte não pode estar no espaço institucionalizado sem buscar a chave de sua
institucionalização?
Contrárias ou não, muitas
proposições podem resultar ingênuas em uma relação dicotômica com a instituição. Mas
uma outra posição possível e
praticada por artistas é a da
atuação desde dentro, questionadora da lógica institucional.
Não houve "acordo" para a
realização de "Vazadores" em
2002, e, sim, reação ao convite
a partir de uma abordagem
não-programada pela Bienal.
O projeto materializou um
"atravessamento" nas estruturas da instituição e do edifício
projetado por Oscar Niemeyer,
e procurou facilitar a convergência das várias esferas constitutivas do lugar da ação.
E a escolha feita por mim do
local do trabalho não poderia
ter sido outra senão a fachada
principal do edifício (oposta à
entrada oficial daquela edição
da mostra).
Composta de ferro e vidro, a
estrutura foi construída para
sugerir, na mimese com a arquitetura, uma reflexão quanto
aos limites da prática artística
inserida no corpo da cidade.
Transparente e silenciosa, a
passagem também se colocou à
prova de uma visualidade condicionada, identificável nos
processos de apreensão da produção contemporânea, e considerou a pertinência de uma
mudança de repertório pautada nas experiências formuladas e vividas no interior dos
fluxos das metrópoles.
Mas não poderia haver filtro
para a realização dessa experiência. O visitante tanto seria
capaz de sair do edifício quanto, se estivesse fora, entrar e
permanecer.
Resulta daí que cada indivíduo trazia consigo a própria dimensão do conteúdo do trabalho. Franqueado e sem sinalização, "Vazadores" apontou
para o alargamento das reflexões instaladas na mostra, facilitando um real enfrentamento
entre a cidade e suas representações.
Semanas após a abertura, porém, a Bienal passou a inibir o
movimento do público e a alterar o projeto (resultando em
minha saída do evento).
Desde o início a proposta levou em conta certas dimensões
socioeconômicas presentes nas
discussões da arte hoje, e questionou nosso papel de agentes
no interior do corpo social (alguns dos aspectos que colocam
agora a Bienal sob debate), o
que acabou por revelar a falta
de habilidade da instituição e
sua dificuldade em lidar com as
tantas superfícies abertas.
E aí voltamos novamente ao
Ferreira Gullar e, quem sabe,
ao centro de uma importante
questão: queremos mesmo saber como são legitimadas as
ações e o pensamento ao redor
da arte, ou a quais interesses
respondem?
RUBENS MANO é artista plástico
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