São Paulo, quarta-feira, 30 de abril de 2008

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RÉPLICA

Texto de Gullar revela oportunismo da "crítica ficcional'

Em resposta a Ferreira Gullar, o artista Rubens Mano afirma que comentário recente de colunista sobre arte contemporânea é "raso e descompromissado'

RUBENS MANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A relutância manifesta por parte da crítica de arte no Brasil em praticar um básico deslocamento em direção à produção contemporânea, de muitas maneiras nos ajuda a entender, mesmo sem explicar, as distorções "impressas" sobre a natureza das ações artísticas realizadas nas últimas décadas.
Mas enquanto até certo tempo tal aparato crítico nos brindava somente com um "falar sem ver", agora verificamos também o oportunismo da "crítica ficcional", segundo a qual, se não é mais possível compreender as intenções do trabalho, cria-se outra realidade em seu lugar para melhor acomodar a pronta vociferação.
Não costumo colocar a condição do artista à frente das questões tratadas por sua arte. Porém, ao citar gratuitamente um projeto meu sem conhecê-lo, o texto escrito por Ferreira Gullar (Ilustrada, 20/4) nos informa um dos sintomas da fragilidade dessa condição, e permite comentar.
Contudo, esta resposta não reage só à surpresa em ver proposições tão díspares (a do artista costarriquenho Guillermo Vargas e o meu trabalho realizado para a Bienal de São Paulo) serem dispostas lado a lado, como a pretenderem a mesma operação; ou à dificuldade declarada por um crítico de arte em aceitar -90 anos depois- o gesto liberador de Duchamp; mas por seu artigo exemplificar a existência de um contexto específico e desvelar o principal motivo de sua aparição: a falta de crítica da crítica.
Pois, se no Brasil houvesse mínimas condições para um freqüente exercício livre e público da crítica, como faz Gullar em sua coluna, dificilmente haveria lugar para texto tão raso e descompromissado. Não pretendo defender a proposta de Guillermo Vargas.
Entretanto, parece-me curioso perceber que a operação criticada no artigo, a "autoridade" do artista e da instituição em facultar um estatuto a algo, é a mesma praticada por Gullar nas páginas da Folha -ao escrever qualquer coisa sem o menor constrangimento.
Não fosse assim, onde mais constataríamos a não-assimilação da "pós-vanguarda"? Ou a idéia de que a arte não pode estar no espaço institucionalizado sem buscar a chave de sua institucionalização?
Contrárias ou não, muitas proposições podem resultar ingênuas em uma relação dicotômica com a instituição. Mas uma outra posição possível e praticada por artistas é a da atuação desde dentro, questionadora da lógica institucional.
Não houve "acordo" para a realização de "Vazadores" em 2002, e, sim, reação ao convite a partir de uma abordagem não-programada pela Bienal.
O projeto materializou um "atravessamento" nas estruturas da instituição e do edifício projetado por Oscar Niemeyer, e procurou facilitar a convergência das várias esferas constitutivas do lugar da ação.
E a escolha feita por mim do local do trabalho não poderia ter sido outra senão a fachada principal do edifício (oposta à entrada oficial daquela edição da mostra).
Composta de ferro e vidro, a estrutura foi construída para sugerir, na mimese com a arquitetura, uma reflexão quanto aos limites da prática artística inserida no corpo da cidade.
Transparente e silenciosa, a passagem também se colocou à prova de uma visualidade condicionada, identificável nos processos de apreensão da produção contemporânea, e considerou a pertinência de uma mudança de repertório pautada nas experiências formuladas e vividas no interior dos fluxos das metrópoles.
Mas não poderia haver filtro para a realização dessa experiência. O visitante tanto seria capaz de sair do edifício quanto, se estivesse fora, entrar e permanecer.
Resulta daí que cada indivíduo trazia consigo a própria dimensão do conteúdo do trabalho. Franqueado e sem sinalização, "Vazadores" apontou para o alargamento das reflexões instaladas na mostra, facilitando um real enfrentamento entre a cidade e suas representações.
Semanas após a abertura, porém, a Bienal passou a inibir o movimento do público e a alterar o projeto (resultando em minha saída do evento).
Desde o início a proposta levou em conta certas dimensões socioeconômicas presentes nas discussões da arte hoje, e questionou nosso papel de agentes no interior do corpo social (alguns dos aspectos que colocam agora a Bienal sob debate), o que acabou por revelar a falta de habilidade da instituição e sua dificuldade em lidar com as tantas superfícies abertas.
E aí voltamos novamente ao Ferreira Gullar e, quem sabe, ao centro de uma importante questão: queremos mesmo saber como são legitimadas as ações e o pensamento ao redor da arte, ou a quais interesses respondem?


RUBENS MANO é artista plástico

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