São Paulo, quarta-feira, 30 de abril de 2008

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MARCELO COELHO

Tempo de séries e de almanaques


O almanaque elimina a narrativa, e não é nem sistemático e ordenado como uma enciclopédia

TUDO COMEÇOU, acho, com o "Almanaque Anos 80", lançado em 2004. Os brinquedos da época, os programas de TV, as celebridades e mais qualquer coisa que compusesse a memória pop daqueles anos eram incluídos ali.
A moda pegou. Várias editoras agora produzem livros desse tipo. Há o almanaque dos anos 90, o dos anos 70. O da jovem guarda, o da música brega, o da Globo.
Saiu agora o "Almanaque dos Seriados de TV", de Paulo Gustavo Pereira (Ediouro). Diferentemente dos almanaques organizados em décadas, este volume de 300 e poucas páginas tem um apelo, digamos, "transgeracional".
Tenta superficialmente dar conta das velharias do meu tempo ("O Menino do Circo", "Ivanhoé") e também daquilo que só conheço de ouvir falar: "Desperate Housewives" e "Lost", por exemplo.
Acho que com tudo, e não só com a leitura de letras pequenas, depois de certa idade começamos a ter os sintomas de vista cansada: enxergamos mal de perto, enquanto o que está distante (no tempo) ainda se distingue com certa nitidez.
Sei que estou perdendo o melhor da festa e que os seriados de hoje são muito mais complexos e bem-feitos que os do meu tempo. Assisti com prazer aos primeiros capítulos de "West Wing", mas não pude ir longe: tive de devolver antes que a locadora tomasse providências judiciais.
Para dar um lustre na minha cultura clássica, vi "Roma" do começo ao fim. Os especialistas dizem que não é o melhor: achei entretanto excelente, pelo menos a primeira temporada.
Mais do que um longa-metragem comum, os seriados atuais provavelmente se equivalem a um bom romance de 500 e tantas páginas: a ambigüidade dos personagens, a sutileza moral das situações, depende da memória que temos de tudo o que fizeram no passado.
Por melhor que seja um filme, não se trata de um meio adequado para dar conta dessa temporalidade mais longa, típica dos romances. Os seriados fazem isso melhor.
A trama envolve tantas informações (e tantas coisas que o espectador ainda desconhece), que diminui muito a previsibilidade de cada episódio. É bem o oposto da chatice das novelas, cuja carga de informações por capítulo tende a zero, e muito diferente dos seriados do meu tempo, nos quais os episódios, independentes entre si, no final repunham tudo na exata situação do início. Volto eu, agora, ao início do artigo.
Se os seriados funcionam como os velhos romances, não digo que os romances vão desaparecer das livrarias (esse tipo de previsão nunca se cumpre). Mas as pessoas parecem que compram mais e mais almanaques.
Justamente o almanaque elimina qualquer narrativa, e não é nem mesmo sistemático e ordenado como uma enciclopédia. Sem índice de nomes nem cronologia, muito menos as indispensáveis datas que qualquer leitor gostaria de ter (quando começou o "Vigilante Rodoviário"? Quando acabou "Chips"?), o "Almanaque dos Seriados" não é, sem dúvida, exceção nesse quesito.
Quem folheia esse gênero de publicação mistura o prazer nostálgico proporcionado por um álbum de figurinhas ou por um livro de fotografias (mas, mesmo assim, onde estão as legendas das fotos?) com outro tipo de "não-leitura": o da consulta pelo Google, o da navegação pela internet.
Os almanaques de hoje são, na verdade, sites em papel. Não exigem mais do que aquela atenção mínima, intermitente e dispersa que é característica de quem vai clicando pela tela do computador.
Recuperam, também, aquela antiga rotina desatenta, a velha e boa preguiça mental que cercava os seriados de outros tempos, e que os de hoje não comportam. Tive os meus seriados preferidos: "James West", "O Agente da Uncle" e "Os Invasores". Ignorei "Bonanza", "Laramie" e "Chaparral". Perdi o bonde com "Star Trek". "Dallas" e "Chaves" já pertencem, na minha biografia, à mais nebulosa pós-modernidade.
Talvez nada disso tenha deixado saudades reais. Duvido que alguém trocasse os seriados de hoje pelos do passado. O que se rememora não são apenas os rostos irreais, os cenários pobres e penteados ridículos de outras décadas. A nostalgia é outra: a de uma idade em que se tinha caminhões de tempo para gastar, em que nenhum compromisso nos tirava de frente da TV. Almanaques recuperam essa experiência de ociosidade e desimportância temporal; e exigem menos minutos do que a internet.

coelhofsp@uol.com.br


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