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MARCELO COELHO
Tempo de séries e de almanaques
O almanaque elimina a narrativa, e não é nem sistemático e ordenado como uma enciclopédia
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TUDO COMEÇOU, acho, com o
"Almanaque Anos 80", lançado em 2004. Os brinquedos
da época, os programas de TV, as celebridades e mais qualquer coisa que
compusesse a memória pop daqueles anos eram incluídos ali.
A moda pegou. Várias editoras
agora produzem livros desse tipo.
Há o almanaque dos anos 90, o dos
anos 70. O da jovem guarda, o da
música brega, o da Globo.
Saiu agora o "Almanaque dos Seriados de TV", de Paulo Gustavo Pereira (Ediouro). Diferentemente
dos almanaques organizados em décadas, este volume de 300 e poucas
páginas tem um apelo, digamos,
"transgeracional".
Tenta superficialmente dar conta
das velharias do meu tempo ("O Menino do Circo", "Ivanhoé") e também daquilo que só conheço de ouvir falar: "Desperate Housewives" e
"Lost", por exemplo.
Acho que com tudo, e não só com a
leitura de letras pequenas, depois de
certa idade começamos a ter os sintomas de vista cansada: enxergamos
mal de perto, enquanto o que está
distante (no tempo) ainda se distingue com certa nitidez.
Sei que estou perdendo o melhor
da festa e que os seriados de hoje são
muito mais complexos e bem-feitos
que os do meu tempo. Assisti com
prazer aos primeiros capítulos de
"West Wing", mas não pude ir longe:
tive de devolver antes que a locadora
tomasse providências judiciais.
Para dar um lustre na minha cultura clássica, vi "Roma" do começo
ao fim. Os especialistas dizem que
não é o melhor: achei entretanto
excelente, pelo menos a primeira
temporada.
Mais do que um longa-metragem
comum, os seriados atuais provavelmente se equivalem a um bom romance de 500 e tantas páginas: a
ambigüidade dos personagens, a sutileza moral das situações, depende
da memória que temos de tudo o
que fizeram no passado.
Por melhor que seja um filme, não
se trata de um meio adequado para
dar conta dessa temporalidade mais
longa, típica dos romances. Os seriados fazem isso melhor.
A trama envolve tantas informações (e tantas coisas que o espectador ainda desconhece), que diminui
muito a previsibilidade de cada episódio. É bem o oposto da chatice das
novelas, cuja carga de informações
por capítulo tende a zero, e muito diferente dos seriados do meu tempo,
nos quais os episódios, independentes entre si, no final repunham tudo
na exata situação do início.
Volto eu, agora, ao início do artigo.
Se os seriados funcionam como os
velhos romances, não digo que os romances vão desaparecer das livrarias (esse tipo de previsão nunca se
cumpre). Mas as pessoas parecem
que compram mais e mais almanaques.
Justamente o almanaque elimina
qualquer narrativa, e não é nem
mesmo sistemático e ordenado como uma enciclopédia. Sem índice de
nomes nem cronologia, muito menos as indispensáveis datas que
qualquer leitor gostaria de ter
(quando começou o "Vigilante Rodoviário"? Quando acabou
"Chips"?), o "Almanaque dos Seriados" não é, sem dúvida, exceção nesse quesito.
Quem folheia esse gênero de publicação mistura o prazer nostálgico
proporcionado por um álbum de figurinhas ou por um livro de fotografias (mas, mesmo assim, onde estão
as legendas das fotos?) com outro tipo de "não-leitura": o da consulta
pelo Google, o da navegação pela
internet.
Os almanaques de hoje são, na
verdade, sites em papel. Não exigem
mais do que aquela atenção mínima,
intermitente e dispersa que é característica de quem vai clicando pela
tela do computador.
Recuperam, também, aquela antiga rotina desatenta, a velha e boa
preguiça mental que cercava os seriados de outros tempos, e que os de
hoje não comportam. Tive os meus
seriados preferidos: "James West",
"O Agente da Uncle" e "Os Invasores". Ignorei "Bonanza", "Laramie"
e "Chaparral". Perdi o bonde com
"Star Trek". "Dallas" e "Chaves" já
pertencem, na minha biografia, à
mais nebulosa pós-modernidade.
Talvez nada disso tenha deixado
saudades reais. Duvido que alguém
trocasse os seriados de hoje pelos do
passado. O que se rememora não são
apenas os rostos irreais, os cenários
pobres e penteados ridículos de outras décadas. A nostalgia é outra: a
de uma idade em que se tinha caminhões de tempo para gastar, em que
nenhum compromisso nos tirava de
frente da TV. Almanaques recuperam essa experiência de ociosidade e
desimportância temporal; e exigem
menos minutos do que a internet.
coelhofsp@uol.com.br
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