São Paulo, sábado, 30 de maio de 2009

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LIVROS

Crítica/"O Aventuroso Simplicissimus"

Obra-prima da língua alemã traz saga de herói picaresco

"O Aventuroso Simplicissimus" se inspira em sermões e relatos de viajantes

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Boa nova: "O Aventuroso Simplicissimus", obra-prima de Hans Jacob Christoffel von Grimmelshausen (1625-1676), pode enfim ser lida em português. O feito se deve à tradução excelente de Mario Frungillo e à valentia da editora da UFPR (Universidade Federal do Paraná).
A história do livro é curiosa. A primeira edição, dividida em cinco partes, saiu em 1668, com a data do ano seguinte. Além disso, atribuiu a Mompelgart, lugar fictício de publicação de papéis satíricos, o privilégio de ser a cidade da edição original, sem mencionar Nuremberg, onde de fato ocorreu.
Em 1669, surgiu uma sexta parte, em edição separada, chamada de "Continuatio". No mesmo ano, nova edição a integra ao conjunto. É a mesma opção feita pela edição brasileira, que se serve, sobretudo, do texto fixado e anotado por Dieter Breuer (Frankfurt, 1989).
A narrativa acompanha as aventuras de Simplicius, jovem herói de 17 anos, emuladas principalmente de novelas pícaras espanholas, como Lazarillo de Tormes ou Guzmán de Alfarache.
Grimmelshausen, entretanto, tem ciência também de obras de escopo bem diverso, como o "Quixote", de Cervantes, os sombrios sermões reformados e os relatos de viajantes do Novo Mundo, cujas notícias dos costumes indígenas causam assombro em toda Europa. Esse misto de base picaresca foi decisivo para a fortuna dos "Schelmenromane", que narram as aventuras bizarras de rapazes, ao mesmo tempo, espertos e ignorantes, inocentes e patifes.

Guerra dos 30 Anos
A ação do "Simplicissimus" está situada na Guerra dos 30 Anos (1618-1648), na qual se jogava a limitação do poder dos Habsburgos, o destino do Sacro Império e o ajuste dos interesses dos senhorios alemães à sorte da luta entre católicos, luteranos e calvinistas.
Não é, contudo, desse teatro de grandes lances que se ocupa a novela, mas sim do varejo dos eventos miseráveis, do verdadeiro campo de butim, devastação e morte no qual se transformara o território alemão.
Criado por camponeses boçais, adotado por um nobre eremita, treinado como bufão, batendo-se num e noutro lado das tropas, seduzindo moças honestas e sendo seduzido por libertinas, Simplicius ganha notoriedade, graças à bela figura e ao espírito engenhoso. Nada, porém, o afasta da sina de joguete dos desastres da fortuna. A posição do jovem herói se revela invariavelmente ridícula, pois denuncia a incompreensão de si e do mundo: "Por isso, eu vivia como um cego, em toda segurança".
Segundo a orientação moralista do livro, poder, beleza e riqueza são delírios, efeitos de um perde-ganha aleatório, torpemente ornado por doutrinas de ocasião. A forma geral da
vida é loucura, presidida pela "lógica da Fortuna", cuja única bússola é a "inconstância".

Sem densidade psicológica
Críticos entusiastas, como Otto Maria Carpeaux, alçaram o "Simplicissimus" aos cumes do "Quixote", de Miguel de Cervantes, por sua síntese de um "naturalismo sincero e crasso" com as "pompas" e a "mística do Barroco".
O entusiasmo é procedente, pela eloquência colorida das aventuras em meio à sem-razão da guerra, mas o exagero é grande, já que a novela não tem a carga afetiva e intelectual exigida do leitor do "Quixote".
Bem menos próprios são os comentários que dão o livro como precursor do "romance de formação", quando está claro que o seu herói não tem (nem precisa ter) densidade psicológica. A mudança operada em seu caráter apenas revela uma natureza que sempre esteve nele, faltando apenas descolar de seus olhos, com o desengano do mundo, a cegueira que lhe pregara o mesmo mundo.

ALCIR PÉCORA
é professor de teoria literária na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)


O AVENTUROSO SIMPLICISSIMUS
Autor: Hans Jacob Christoffel von Grimmelshausen
Tradução: Mario Luiz Frungillo
Editora: UFPR
Quanto: R$ 67 (664 págs.)
Avaliação: ótimo




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