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GASTRONOMIA
Férias, pé na estrada
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Sair de férias não é fácil. É
sair mesmo. Sair de uma realidade e entrar na outra. O que
não se faz devagarinho, com ensaio, mas assim de repente, em
seis horas ou até bem menos. Com
a sensibilidade tenra, com a rotina que equilibra deixada para
trás, lá vamos nós.
Jeep abarrotado com milhões de
impropriedades: tricô, crochê, panos de prato para fazer bainha,
computador para comunicação,
por onde andará o telefone fixo,
aquele dinossauro amável, que só
nos incomodava em casa? Substituído por este infernal celular.
Paulo Francis dizia que celular é
coisa para empregado, e custei
para entender. Claro, você se torna o pajem, a babá desse trinado.
Tem de ter espírito servil para
aguentar ser interrompido, invadido a toda hora, em qualquer lugar, por dá lá aquela palha.
Férias. Na serra, uma bebedeira
de cheiros diferentes, de cores, boleros e tangos no toca-fitas. Haja
reminiscências e memórias da juventude. "Todos dicen que es
mentira que te quiero", "tu me
acostumbraste", "Sutil!!!", os sentimentos dos 15 anos de idade tatuados na carne. Pra lá, vai-te,
Satanás.
A verdade que fica para trás
não é cômoda. O sequestro do
ônibus não pode sair de pauta.
Nunca. Fiquei intrigada com o fato de quase todos os cronistas de
todos os jornais estarem na TV
vendo a vida passar na hora do
drama. Os que não assistiram ao
vivo o balé macabro não entenderam direito, era só mais um crime, mais uma violência. Era preciso estar lá, ao vivo, com o nariz
na tela.
Para caber numa coluna de
gastronomia, é bom saber que
Geísa comia arroz, feijão e bife
quando acabava de dar aula,
mas gostava e esperava com ansiedade o dia da pizza. Macabéa
com pós-graduação na Rocinha
marcada para morrer.
E, sinal dos tempos, quando se
ouviu o tiro, o caso dado por encerrado, a criançada à volta correu para junto do ônibus, de bicicleta, de patins, a pé, rindo, alegres, para ver o bandido preso, caso corriqueiro e divertido.
E voltaram para trás, sérios, rápidos, com o rabo entre as pernas,
fim de brincadeira. Na cabeça, a
imagem da moça de tênis, carregada, os olhos abertos e velados,
os braços frouxos, o corpo largado, o jorro de sangue.
Mas estamos em férias. No banheiro do restaurante, na pia
trincada, a menina vomita a alma, o Dramin, a gravidez, a memória do que pensou que era
amor, alheia ao mundo em volta.
Vômito que vem do umbigo,
olheiras mortiças, espinhas na pele de um moreno muito pálido.
O restaurante é o mesmo de
sempre. Sobre o caixa, um anúncio de Chicabom 500: "Essa marca faz parte de sua história
-www.kibon.com.br". Comprimidos nas prateleiras, os doces
dos quais se lembrarão nossos netos. Ping-pong, Bubbaloo, Fleis,
Halls, Milky Way, Chokito, Kinder Bueno e uma paçoquinha desavergonhada.
O encarregado vem de lá de
dentro intrigado com minha curiosidade, quer vender uma bala.
Disfarço e passo para os cigarros:
Derby, Dallas, Shelton, Hollywood, Free, Galaxy, Marlboro.
Vamos ao cafezinho. De máquina ou passado no coador? Ugh,
fraco de coador, não. Covardemente escolhemos o de máquina.
Mas tem requeijão de prato, queijo fresco e, para salvar a pátria,
pamonhas de caetê. Não sei o que
é. A menina explica que é uma folha grande que dá na beira do rio
e serve para substituir a palha de
milho. Levo seis para pesquisa de
campo. É só milho mesmo, um
pouco doce demais e de consistência granulada. A folha é bonita,
muito maleável e não transmite
gosto diferente.
O requeijão de prato foi aprovado e aplaudido, as variedades de
bananas secas idem, a coalhada é
grossa, as empadas, pães de queijo e coxinhas totalmente inafiançáveis. Ai, que ódio, como seria
bom ter uma empadinha de estrada bem-feita. A linguiça calabresa, feita ali pelos arredores, é
bem gostosa, aberta ao meio, na
chapa. E daí começam as férias
num esplendor caipira de água
verde e azul e peixes cobertos de
sedas ricas, listras douradas, xadrez em dégradés, bolinhas mínimas de prata. E o neto pergunta:
"É de comer? É gostoso?". É beleza
pura, mas é de comer, sim, Senhor.
E-mail - ninahort@uol.com.br
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