São Paulo, sexta-feira, 30 de junho de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GASTRONOMIA
Férias, pé na estrada

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Sair de férias não é fácil. É sair mesmo. Sair de uma realidade e entrar na outra. O que não se faz devagarinho, com ensaio, mas assim de repente, em seis horas ou até bem menos. Com a sensibilidade tenra, com a rotina que equilibra deixada para trás, lá vamos nós.
Jeep abarrotado com milhões de impropriedades: tricô, crochê, panos de prato para fazer bainha, computador para comunicação, por onde andará o telefone fixo, aquele dinossauro amável, que só nos incomodava em casa? Substituído por este infernal celular. Paulo Francis dizia que celular é coisa para empregado, e custei para entender. Claro, você se torna o pajem, a babá desse trinado. Tem de ter espírito servil para aguentar ser interrompido, invadido a toda hora, em qualquer lugar, por dá lá aquela palha.
Férias. Na serra, uma bebedeira de cheiros diferentes, de cores, boleros e tangos no toca-fitas. Haja reminiscências e memórias da juventude. "Todos dicen que es mentira que te quiero", "tu me acostumbraste", "Sutil!!!", os sentimentos dos 15 anos de idade tatuados na carne. Pra lá, vai-te, Satanás.
A verdade que fica para trás não é cômoda. O sequestro do ônibus não pode sair de pauta. Nunca. Fiquei intrigada com o fato de quase todos os cronistas de todos os jornais estarem na TV vendo a vida passar na hora do drama. Os que não assistiram ao vivo o balé macabro não entenderam direito, era só mais um crime, mais uma violência. Era preciso estar lá, ao vivo, com o nariz na tela.
Para caber numa coluna de gastronomia, é bom saber que Geísa comia arroz, feijão e bife quando acabava de dar aula, mas gostava e esperava com ansiedade o dia da pizza. Macabéa com pós-graduação na Rocinha marcada para morrer.
E, sinal dos tempos, quando se ouviu o tiro, o caso dado por encerrado, a criançada à volta correu para junto do ônibus, de bicicleta, de patins, a pé, rindo, alegres, para ver o bandido preso, caso corriqueiro e divertido.
E voltaram para trás, sérios, rápidos, com o rabo entre as pernas, fim de brincadeira. Na cabeça, a imagem da moça de tênis, carregada, os olhos abertos e velados, os braços frouxos, o corpo largado, o jorro de sangue.
Mas estamos em férias. No banheiro do restaurante, na pia trincada, a menina vomita a alma, o Dramin, a gravidez, a memória do que pensou que era amor, alheia ao mundo em volta. Vômito que vem do umbigo, olheiras mortiças, espinhas na pele de um moreno muito pálido.
O restaurante é o mesmo de sempre. Sobre o caixa, um anúncio de Chicabom 500: "Essa marca faz parte de sua história -www.kibon.com.br". Comprimidos nas prateleiras, os doces dos quais se lembrarão nossos netos. Ping-pong, Bubbaloo, Fleis, Halls, Milky Way, Chokito, Kinder Bueno e uma paçoquinha desavergonhada.
O encarregado vem de lá de dentro intrigado com minha curiosidade, quer vender uma bala. Disfarço e passo para os cigarros: Derby, Dallas, Shelton, Hollywood, Free, Galaxy, Marlboro.
Vamos ao cafezinho. De máquina ou passado no coador? Ugh, fraco de coador, não. Covardemente escolhemos o de máquina. Mas tem requeijão de prato, queijo fresco e, para salvar a pátria, pamonhas de caetê. Não sei o que é. A menina explica que é uma folha grande que dá na beira do rio e serve para substituir a palha de milho. Levo seis para pesquisa de campo. É só milho mesmo, um pouco doce demais e de consistência granulada. A folha é bonita, muito maleável e não transmite gosto diferente.
O requeijão de prato foi aprovado e aplaudido, as variedades de bananas secas idem, a coalhada é grossa, as empadas, pães de queijo e coxinhas totalmente inafiançáveis. Ai, que ódio, como seria bom ter uma empadinha de estrada bem-feita. A linguiça calabresa, feita ali pelos arredores, é bem gostosa, aberta ao meio, na chapa. E daí começam as férias num esplendor caipira de água verde e azul e peixes cobertos de sedas ricas, listras douradas, xadrez em dégradés, bolinhas mínimas de prata. E o neto pergunta: "É de comer? É gostoso?". É beleza pura, mas é de comer, sim, Senhor.
E-mail - ninahort@uol.com.br


Texto Anterior: Rádio: MTV vende programas de TV para FMs
Próximo Texto: Mundo Gourmet - Josimar Melo: Novo italiano Bellalluna não decepciona paladar
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.