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ANTONIO CICERO
A razão da modernidade
Nossa época, diz Kant, é propriamente a época da crítica, à qual tudo deve submeter-se
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SÃO FREQÜENTEMENTE atribuídas à modernidade (ou à racionalidade, ou à razão, ou à "racionalidade moderna" etc.) as inúmeras atrocidades que tiveram lugar no século 20. Entre os mais importantes dos primeiros pensadores
hostis à "razão moderna" encontram-se Pascal, Burke e os românticos alemães. Mais próximos de nós,
os pensamentos de Nietzsche, Heidegger e dos pós-estruturalistas, por
um lado, e de Max Weber e Adorno,
por outro, são, provavelmente, as
mais importantes matrizes contemporâneas dessa desconfiança.
Entre os contemporâneos, são
muitos os que, como Zygmunt Bauman, argumentam que os genocídios e massacres do século passado
resultaram das concepções modernas da sociedade. Tomo ao léu um
exemplo: o cientista político e antropólogo norte-americano James
Scott afirma que grande parte das
tragédias políticas do século 20 "agitaram a bandeira do progresso, da
emancipação e da reforma" que, segundo ele, caracterizam os tempos
modernos.
Recentemente, porém, o historiador alemão Jörg Baberowski pôs esse senso comum em questão no livro
"Tempos Modernos?" ("Moderne
Zeiten?"; Götttingen, 2006), em que
apresenta os resultados de um encontro sobre "Guerra e revolução no
século 20", que teve lugar em Tübingen, em 2001.
Suas conclusões indicam que, independentemente da modernidade
dos pretextos invocados para justificar a violência na União Soviética,
na China ou na Alemanha nacional-socialista, a verdade é que "onde
quer que a violência se autonomizou
e se tornou uma estrutura dominante, os pretextos foram esquecidos.
Stálin e Mao não apenas sonharam
com o belo e novo mundo, eles vinham do velho mundo e agiam como se pode esperar de déspotas pré-modernos. [...] Não é acidente que o
discurso moderno sobre raças e
classes tenha levado ao assassinato
em massa na Alemanha, na União
Soviética e na China, mas não nos
Estados Unidos ou na Europa Ocidental".
Baberowski está sem dúvida certo
quanto à pré-modernidade desses
regimes ditatoriais. Entretanto, ele
está errado ao qualificar de modernos os próprios pretextos por eles
invocados para fazer o que fizeram.
Para explicar por que penso assim,
recorro a Immanuel Kant, que pode
ser considerado o filósofo clássico
da modernidade. "Nossa época", diz
ele, na "Crítica da Razão Pura", "é
propriamente a época da crítica, à
qual tudo deve submeter-se. A religião, através da sua santidade, e a legislação, através da sua majestade,
querem em comum subtrair-se a
ela. Mas então suscitam uma justa
suspeição contra si, e não podem aspirar ao respeito sincero que a razão
só concede àquilo que consegue suportar a sua investigação livre e pública".
Retenhamos os seguintes pontos:
1) a nossa época, isto é, a modernidade, é a época da crítica 2) a crítica é
uma manifestação da razão; 3) a crítica se dá o direito de investigar, de
modo irrestrito e público, absolutamente tudo; 4) a crítica não respeita
ou endossa coisa alguma que não se
submeta ao seu escrutínio; e 5) a crítica é capaz de criticar a si própria
(pois a própria "crítica da razão pura" é a crítica exercida pela razão pura à própria razão pura).
Etimologicamente, crítica quer
dizer separação, distinção, escolha,
seleção, distinção, juízo. É a crítica
que separa, por exemplo, a esfera religiosa da esfera secular, separação
que consideramos característica da
modernidade.
É verdade que, além de ser crítica,
a razão é também usada como um
instrumento para a construção de
sistemas de pensamento: de teorias
científicas, tecnologias, obras de arte, conceitos filosóficos, concepções
teológicas, ideologias (modernas e
antimodernas) e até de religiões.
Contudo, na modernidade, essas
mesmas construções da razão instrumental, como tudo o que há, também estão sujeitas a serem criticadas pela própria razão. Pois bem, na
medida em que as construções da
razão sejam subtraídas à crítica, esta
as rejeita. É o caso das ideologias que
serviram de pretexto para justificar
as violências totalitárias.
Ainda mais grave e incompatível
com a crítica é a constituição de impedimentos (como a censura) para o
seu exercício. Ora, uma vez que
qualquer totalitarismo, mesmo
quando tenta justificar-se com argumentos racionalmente construídos,
estabelece impedimentos para o
exercício da crítica universal, irrestrita e pública -que vimos ser essencial à modernidade- é evidente
que a modernidade não é compatível senão com uma sociedade aberta.
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