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CARLOS HEITOR CONY
Deus e o Diabo na Ilha do Governador
Na banca de jornais, em todas as bancas, em todos os
jornais, ele olha fotografias da
rua onde mora. Em foto quase do
tamanho da página, lá está o poste fatal. Uma seta e a linha pontilhada indicam onde estivera
agarrada a "aparição".
Seu Jair, vizinho e teosofista,
egresso do positivismo, mas com
rápida passagem pelo candomblé, pontifica num quarto de página interna. O repórter descobrira o veio mais substancioso, deu-lhe corda, e o homem falou. A cara familiar do vizinho, suada, esbaforida, trêmula pelos acontecimentos, com o mesmo blusão de
xadrezinhos amarelo-e-pretos
com o qual vai todas as manhãs
pechinchar sardinhas aos pescadores que chegam das canoas fatigadas.
A fotografia mostra-o em atitude teatral, o dedo em riste, parece
dizer: "Eu acuso!". Mas não chega
a acusar ninguém. Identifica-se
como funcionário aposentado do
arsenal da Marinha e aproveita a
oportunidade de estar falando à
plebe para apelar às autoridades
competentes, a fim de obter os
adicionais que complicada portaria dava a uns e negava a outros.
Ele fica sabendo que seu Jair
cursou até o terceiro ano de direito, usou muito a palavra hermenêutica e ele guarda a palavra para sugeri-la como senha qualquer
dia desses.
Junta gente em torno da banca:
-Está dando aparição na ilha!
-Isso é malandro!
-A culpada é a ponte!
Um dos entrevistados morou na
ilha. Culpa a ponte ligando o Galeão a Bonsucesso. Antes era um
paraíso, sem malfeitores; a ponte
trouxera a maldade do continente, estragara tudo, por ela passavam os vagabundos, os ladrões, os
assassinos. Antigamente havia as
barcas, a velha Quinta, que levava mais de uma hora para ir do
Faroux à Ribeira, andando sempre adernada, ameaçando naufrágio. Nas longas travessias, todos terminavam conhecidos ou
compadres, as viagens depuravam os maus elementos, os suspeitos não se atreviam, depois da
meia-noite não havia mais barca,
a fuga impossível.
Um cara abre o debate. Sendo a
aparição do outro mundo, não
necessitava de ponte para chegar
até a ilha. Mas a ponte tinha a
culpa mesmo, por ela passara a
maldade, a impureza do mundo,
a aparição era decorrência.
Um mulato coopera com suas
luzes. Lera as declarações de seu
Jair, está bem informado, fala em
macumba, conhece casos acontecidos em Minas, em Minas dá
muitas aparições.
Chegam novos jornais que logo
são abertos. A notícia continua a
merecer as primeiras páginas. Seu
Jair tem menor acolhida, é citado
incidentalmente, sem as honras
da foto e da biografia. Em compensação, o delegado local pontifica com solenidade. Seu depoimento é assombroso: descreve a
aparição como "um corpo gelatinoso, semifluido e escuro, movendo-se disforme e em círculos concêntricos".
Um jornal, em vista desses círculos concêntricos, chega a lembrar a hipótese de um extraterrestre, cita autoridades navais que
atestam ter um corpo estranho e
não identificado se desintegrando
no ar, nas imediações da ilha do
Rijo, a nordeste da ilha.
O órgão da reserva moral da
nação trouxe a palavra autorizada da igreja sobre o assunto. O
cardeal não pudera ser ouvido,
estava pregando retiro espiritual
para as freiras agostinianas, o jeito foi o arcebispo auxiliar entrar
na dança, aliás entrava em tudo o
que era dança, dava palpite sobre
concurso de misses, resultados de
futebol, marcação por zona, reforma agrária, política cambial,
cultura do cacau, lavoura do açúcar, a invasão do Iraque -não
perde oportunidade, faz um relato sobre aparições. Como o espaço
do jornal é insuficiente para todas, pula do Tabor para a Ilha do
Governador, afirmando que na
maioria dos casos elas se prendem
a missões destinadas à Revelação
ou à Redenção, não pode adiantar nada por ora, a Santa Madre é
sóbria e cauta nessas questões,
mas aproveita para apelar todos
para que cooperem com a campanha financeira de são Camilo de
Lélis, em favor dos hansenianos
que estão desprotegidos do governo e dos planos de saúde.
-Cruz de Cristo!
Ele volta para casa, enfrenta a
ponte por onde passa a maldade
do continente e por onde ele passa, levando dentro de si a maldade, a dele e a do mundo. Ao chegar à rua onde mora, o soldado
barra sua entrada, o fuzil em diagonal com o corpo.
-A senha não é mais essa.
-Foi a que me deram, hoje pela manhã.
-Só vigorou até as seis horas.
Agora é outra.
-Como vou adivinhar?
-O problema é seu.
-Chame o oficial-de-dia.
Vem o oficial, toma conhecimento do fato, examina-o com
atenção, talvez peça a identidade,
qualquer documento que ateste
sua moradia naquele trecho. Depois de hesitar um pouco, o libera
com generosidade:
-Mas olhe: amanhã pela manhã, a senha muda. Só sai e só entra se souber a senha certa.
-E qual será a senha de amanhã?
-Sete flechas.
Ele pergunta, mais para si mesmo:
-A vela a Deus e ao Diabo?
-Não brinque. A coisa está séria. Até as Forças Armadas estão
preocupadas.
-Não estou brincando. Eu
também estou preocupado.
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