São Paulo, sexta-feira, 30 de julho de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Deus e o Diabo na Ilha do Governador

Na banca de jornais, em todas as bancas, em todos os jornais, ele olha fotografias da rua onde mora. Em foto quase do tamanho da página, lá está o poste fatal. Uma seta e a linha pontilhada indicam onde estivera agarrada a "aparição".
Seu Jair, vizinho e teosofista, egresso do positivismo, mas com rápida passagem pelo candomblé, pontifica num quarto de página interna. O repórter descobrira o veio mais substancioso, deu-lhe corda, e o homem falou. A cara familiar do vizinho, suada, esbaforida, trêmula pelos acontecimentos, com o mesmo blusão de xadrezinhos amarelo-e-pretos com o qual vai todas as manhãs pechinchar sardinhas aos pescadores que chegam das canoas fatigadas.
A fotografia mostra-o em atitude teatral, o dedo em riste, parece dizer: "Eu acuso!". Mas não chega a acusar ninguém. Identifica-se como funcionário aposentado do arsenal da Marinha e aproveita a oportunidade de estar falando à plebe para apelar às autoridades competentes, a fim de obter os adicionais que complicada portaria dava a uns e negava a outros.
Ele fica sabendo que seu Jair cursou até o terceiro ano de direito, usou muito a palavra hermenêutica e ele guarda a palavra para sugeri-la como senha qualquer dia desses.
Junta gente em torno da banca:
-Está dando aparição na ilha!
-Isso é malandro!
-A culpada é a ponte!
Um dos entrevistados morou na ilha. Culpa a ponte ligando o Galeão a Bonsucesso. Antes era um paraíso, sem malfeitores; a ponte trouxera a maldade do continente, estragara tudo, por ela passavam os vagabundos, os ladrões, os assassinos. Antigamente havia as barcas, a velha Quinta, que levava mais de uma hora para ir do Faroux à Ribeira, andando sempre adernada, ameaçando naufrágio. Nas longas travessias, todos terminavam conhecidos ou compadres, as viagens depuravam os maus elementos, os suspeitos não se atreviam, depois da meia-noite não havia mais barca, a fuga impossível.
Um cara abre o debate. Sendo a aparição do outro mundo, não necessitava de ponte para chegar até a ilha. Mas a ponte tinha a culpa mesmo, por ela passara a maldade, a impureza do mundo, a aparição era decorrência.
Um mulato coopera com suas luzes. Lera as declarações de seu Jair, está bem informado, fala em macumba, conhece casos acontecidos em Minas, em Minas dá muitas aparições.
Chegam novos jornais que logo são abertos. A notícia continua a merecer as primeiras páginas. Seu Jair tem menor acolhida, é citado incidentalmente, sem as honras da foto e da biografia. Em compensação, o delegado local pontifica com solenidade. Seu depoimento é assombroso: descreve a aparição como "um corpo gelatinoso, semifluido e escuro, movendo-se disforme e em círculos concêntricos".
Um jornal, em vista desses círculos concêntricos, chega a lembrar a hipótese de um extraterrestre, cita autoridades navais que atestam ter um corpo estranho e não identificado se desintegrando no ar, nas imediações da ilha do Rijo, a nordeste da ilha.
O órgão da reserva moral da nação trouxe a palavra autorizada da igreja sobre o assunto. O cardeal não pudera ser ouvido, estava pregando retiro espiritual para as freiras agostinianas, o jeito foi o arcebispo auxiliar entrar na dança, aliás entrava em tudo o que era dança, dava palpite sobre concurso de misses, resultados de futebol, marcação por zona, reforma agrária, política cambial, cultura do cacau, lavoura do açúcar, a invasão do Iraque -não perde oportunidade, faz um relato sobre aparições. Como o espaço do jornal é insuficiente para todas, pula do Tabor para a Ilha do Governador, afirmando que na maioria dos casos elas se prendem a missões destinadas à Revelação ou à Redenção, não pode adiantar nada por ora, a Santa Madre é sóbria e cauta nessas questões, mas aproveita para apelar todos para que cooperem com a campanha financeira de são Camilo de Lélis, em favor dos hansenianos que estão desprotegidos do governo e dos planos de saúde.
-Cruz de Cristo!
Ele volta para casa, enfrenta a ponte por onde passa a maldade do continente e por onde ele passa, levando dentro de si a maldade, a dele e a do mundo. Ao chegar à rua onde mora, o soldado barra sua entrada, o fuzil em diagonal com o corpo.
-A senha não é mais essa.
-Foi a que me deram, hoje pela manhã.
-Só vigorou até as seis horas. Agora é outra.
-Como vou adivinhar?
-O problema é seu.
-Chame o oficial-de-dia.
Vem o oficial, toma conhecimento do fato, examina-o com atenção, talvez peça a identidade, qualquer documento que ateste sua moradia naquele trecho. Depois de hesitar um pouco, o libera com generosidade:
-Mas olhe: amanhã pela manhã, a senha muda. Só sai e só entra se souber a senha certa.
-E qual será a senha de amanhã?
-Sete flechas.
Ele pergunta, mais para si mesmo:
-A vela a Deus e ao Diabo?
-Não brinque. A coisa está séria. Até as Forças Armadas estão preocupadas.
-Não estou brincando. Eu também estou preocupado.


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