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Com dois títulos reeditados, Autran Dourado, 79, diz que escrever não dá prazer e é uma fatalidade
Um cavalheiro de antigamente
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
Ao alto de um edifício antigo do
Botafogo, numa rua outrora menos barulhenta do Rio de Janeiro,
retirou-se Autran Dourado.
Acorda cedo e já em horas primeiras beira prateleiras e estantes
de seu apartamento à prazerosa
procura por algum livro. Os pés
trêmulos, as mãos trêmulas, o mal
de Parkinson a afetar-lhe os movimentos, desvia-se de um e de
outro objeto antigo, mineiros como seu dono. Hoje, na manhã que
precede a tarde em que recebe a
visita da Folha, opta por Edgar
Allan Poe. Com Poe, nos espera.
Dourado aproxima-se da porta
com a mesma lentidão com que, a
partir da pequena cidade de Patos
de Minas, onde nasceu, vem hoje
aproximando-se dos 80 anos. Entre essas duas distantes e igualmente irrelevantes marcas no
tempo, seu nascimento e esta entrevista, publicou, entre romances, contos e ensaios, 23 livros, alguns altamente prezados pela crítica, como "Ópera dos Mortos".
Agora, até o fim do ano, verá todos eles reeditados pela Rocco,
movimento que se iniciou pouco
depois de ele ter recebido o Prêmio Camões de Literatura, em
2000. Em agosto, dois novos velhos títulos: "O Meu Mestre Imaginário" e "Violetas e Caracóis".
O prêmio o estimulou, sim. Ele
não nega a honra de ter se alinhado a João Cabral de Melo Neto ou
Antonio Candido. Mas Dourado,
menos que entusiasmo, é pura resignação: em suas palavras, na
voz igualmente trêmula, literatura e seus meandros convertem-se
em acidente, em acaso. São pura
fatalidade.
(JULIÁN FUKS)
Folha - O senhor já disse que há
um grupo de livros seus que pensa
terem dado conta do recado. O que
os dois que estão sendo relançados
agora têm a acrescentar?
Autran Dourado - Sempre me
perguntam, sobretudo quando
vou a universidades, quais foram
os autores que me influenciaram.
Fiz "O Meu Mestre Imaginário"
para não ter mais que responder a
essa pergunta. Já estou quase com
80 anos, uma idade até vergonhosa de dizer, e em uma fase em que
já selecionei meus autores. Leva-se a vida inteira selecionando os
livros que se deve ler quando se
está aposentado. Agora sei os livros que devo ler. E não tenho
medo de clássicos. Os clássicos
são necessários.
Folha - E o que seria o clássico?
Dourado - É aquele que, mesmo
sem querer, inova. Alguém disse
algum dia que ler Homero é chato. Mas a chatice não é uma qualidade literária para ser julgada.
Folha - A erudição é necessária
ao escritor?
Dourado - A erudição é acidental, embora seja uma coisa que se
busque. Quando o autor está começando a escrever, não pode
pensar em ninguém. Nem em outros autores nem em seu público,
porque sequer consegue saber
quem é seu público. O escritor é
aquele solitário. Eu não sei qual é
meu leitor e não me submeto à
posição de procurá-lo.
É por isso que vejo com certo escândalo o que está acontecendo
no Brasil: pessoas jovens que se
iniciam na literatura e querem logo vender livro. Têm vocação de
best-seller. São fabricantes de livro, e o livro que você vê não resultou de nenhum esforço maior,
não correu nenhum sangue por
ele. Isso não é ser escritor. Vender
livro é um acidente na vida de um
escritor.
Folha - O senhor diz que o escritor é um solitário, e é impossível
não pensar em seus personagens,
que são também solitários, tomados de medo e angústia.
Dourado - Meus personagens se
parecem muito comigo. Eu os conheço muito bem e sofro a angústia que eles sofrem. Não tenho nenhum prazer em escrever. Depois
de pronta a obra, aí me dá uma
certa satisfação, mas a mesma que
dá quando se descarrega dos ombros um fardo pesado.
Folha - Se não dá prazer, então
por que escrever?
Dourado - É também uma fatalidade. Você é destinado à literatura, e não a literatura a você. Escrever é uma imitação. A gente escreve feito um menino que vê o livro
como um brinquedo e pensa "ah,
eu quero um". Quando eu li pela
primeira vez "Dom Casmurro",
eu disse "puxa, eu quero o meu".
Daí a necessidade que se tem de
ler. Quando estou para escrever,
gosto muito de ler um poema,
Drummond, João Cabral. Não é o
poema que eu vou fazer, mas acho
que me prepara.
Folha - E que expectativa o senhor tem em relação à sua obra?
Que inove sem que queira inovar?
Dourado - É exatamente isso.
Não é propriamente um propósito, mas a idéia é transportar uma
chama, que passa para outro e para outro. É um encadeamento de
autores, de autores de uma mesma família literária. Mas eu vivi
recentemente a experiência de reler minha própria obra, e me deu
uma coisa quase como uma náusea. Me dá uma náusea pensar
nessas perguntas todas. O que se
deve procurar é escrever bem. E
selecionar os poucos autores que
se deve ler, que são os que aperfeiçoam o trato da linguagem. Porque literatura é linguagem carregada de sentido.
Folha - Os escritores são carapinas do nada?
Dourado - São carapinas do nada. Você citou aí um conto meu
de que gosto muito: "Os Mínimos
Carapinas do Nada". São os velhos que ficavam na janela de casa, esculpindo, tirando pequenas
aparas de madeira, fazendo caracóis. Procurando o nada. Escreve-se para chegar ao nada. O enredo,
por exemplo, é uma das coisas
menos importantes no romance.
É o artifício que o autor usa para
prender o leitor, para engabelá-lo
enquanto bate sua carteira.
Folha - E o que rouba?
Dourado - A emoção dele, sentir
que ele está preso ao livro, que você o tem pela mão. E não que ele
esteja com você na mão.
Folha - Escrever, então, é artifício, e não inspiração?
Dourado - Há na palavra inspiração uma certa traição. Eu prefiro
"idéia súbita". Quando me vem
uma idéia súbita, eu a cultivo até
encontrar a forma do romance.
Folha - E sobre a possível morte
do romance, que, depois das vanguardas, tanto se vaticina?
Dourado - Quando o Fernando
Sabino foi passar uma temporada
na Europa, ele voltou e me disse:
"Você está perdendo seu tempo.
O romance morreu". Eu disse: "Ô,
Fernando, você está me dando
uma notícia tristíssima. Porque
eu acabei de deixar um romance
na editora. Justo hoje você vem
me comunicar a morte de um parente meu?". Não morreu. O europeu é que é muito preocupado
com essas coisas.
Folha - E não vai morrer?
Dourado - Se vai morrer, eu não
posso dizer, porque quem pode
morrer antes sou eu.
Folha - No momento, o senhor está escrevendo alguma coisa?
Dourado - Estou preparando um
livro, mas nunca mostro antes de
estar pronto. Mas estou escrevendo com muita dificuldade porque
estou muito preocupado com
aquilo que é permanente na literatura. Que é o valor literário, sobretudo os valores formais. É um
peso que aumenta com o passar
do tempo. O peso de já ter escrito.
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