São Paulo, sábado, 30 de julho de 2005

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Com dois títulos reeditados, Autran Dourado, 79, diz que escrever não dá prazer e é uma fatalidade

Um cavalheiro de antigamente

ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Ao alto de um edifício antigo do Botafogo, numa rua outrora menos barulhenta do Rio de Janeiro, retirou-se Autran Dourado. Acorda cedo e já em horas primeiras beira prateleiras e estantes de seu apartamento à prazerosa procura por algum livro. Os pés trêmulos, as mãos trêmulas, o mal de Parkinson a afetar-lhe os movimentos, desvia-se de um e de outro objeto antigo, mineiros como seu dono. Hoje, na manhã que precede a tarde em que recebe a visita da Folha, opta por Edgar Allan Poe. Com Poe, nos espera.
Dourado aproxima-se da porta com a mesma lentidão com que, a partir da pequena cidade de Patos de Minas, onde nasceu, vem hoje aproximando-se dos 80 anos. Entre essas duas distantes e igualmente irrelevantes marcas no tempo, seu nascimento e esta entrevista, publicou, entre romances, contos e ensaios, 23 livros, alguns altamente prezados pela crítica, como "Ópera dos Mortos". Agora, até o fim do ano, verá todos eles reeditados pela Rocco, movimento que se iniciou pouco depois de ele ter recebido o Prêmio Camões de Literatura, em 2000. Em agosto, dois novos velhos títulos: "O Meu Mestre Imaginário" e "Violetas e Caracóis".
O prêmio o estimulou, sim. Ele não nega a honra de ter se alinhado a João Cabral de Melo Neto ou Antonio Candido. Mas Dourado, menos que entusiasmo, é pura resignação: em suas palavras, na voz igualmente trêmula, literatura e seus meandros convertem-se em acidente, em acaso. São pura fatalidade. (JULIÁN FUKS)

 

Folha - O senhor já disse que há um grupo de livros seus que pensa terem dado conta do recado. O que os dois que estão sendo relançados agora têm a acrescentar?
Autran Dourado -
Sempre me perguntam, sobretudo quando vou a universidades, quais foram os autores que me influenciaram. Fiz "O Meu Mestre Imaginário" para não ter mais que responder a essa pergunta. Já estou quase com 80 anos, uma idade até vergonhosa de dizer, e em uma fase em que já selecionei meus autores. Leva-se a vida inteira selecionando os livros que se deve ler quando se está aposentado. Agora sei os livros que devo ler. E não tenho medo de clássicos. Os clássicos são necessários.

Folha - E o que seria o clássico?
Dourado -
É aquele que, mesmo sem querer, inova. Alguém disse algum dia que ler Homero é chato. Mas a chatice não é uma qualidade literária para ser julgada.

Folha - A erudição é necessária ao escritor?
Dourado -
A erudição é acidental, embora seja uma coisa que se busque. Quando o autor está começando a escrever, não pode pensar em ninguém. Nem em outros autores nem em seu público, porque sequer consegue saber quem é seu público. O escritor é aquele solitário. Eu não sei qual é meu leitor e não me submeto à posição de procurá-lo.
É por isso que vejo com certo escândalo o que está acontecendo no Brasil: pessoas jovens que se iniciam na literatura e querem logo vender livro. Têm vocação de best-seller. São fabricantes de livro, e o livro que você vê não resultou de nenhum esforço maior, não correu nenhum sangue por ele. Isso não é ser escritor. Vender livro é um acidente na vida de um escritor.

Folha - O senhor diz que o escritor é um solitário, e é impossível não pensar em seus personagens, que são também solitários, tomados de medo e angústia.
Dourado -
Meus personagens se parecem muito comigo. Eu os conheço muito bem e sofro a angústia que eles sofrem. Não tenho nenhum prazer em escrever. Depois de pronta a obra, aí me dá uma certa satisfação, mas a mesma que dá quando se descarrega dos ombros um fardo pesado.

Folha - Se não dá prazer, então por que escrever?
Dourado -
É também uma fatalidade. Você é destinado à literatura, e não a literatura a você. Escrever é uma imitação. A gente escreve feito um menino que vê o livro como um brinquedo e pensa "ah, eu quero um". Quando eu li pela primeira vez "Dom Casmurro", eu disse "puxa, eu quero o meu". Daí a necessidade que se tem de ler. Quando estou para escrever, gosto muito de ler um poema, Drummond, João Cabral. Não é o poema que eu vou fazer, mas acho que me prepara.

Folha - E que expectativa o senhor tem em relação à sua obra? Que inove sem que queira inovar?
Dourado -
É exatamente isso. Não é propriamente um propósito, mas a idéia é transportar uma chama, que passa para outro e para outro. É um encadeamento de autores, de autores de uma mesma família literária. Mas eu vivi recentemente a experiência de reler minha própria obra, e me deu uma coisa quase como uma náusea. Me dá uma náusea pensar nessas perguntas todas. O que se deve procurar é escrever bem. E selecionar os poucos autores que se deve ler, que são os que aperfeiçoam o trato da linguagem. Porque literatura é linguagem carregada de sentido.

Folha - Os escritores são carapinas do nada?
Dourado -
São carapinas do nada. Você citou aí um conto meu de que gosto muito: "Os Mínimos Carapinas do Nada". São os velhos que ficavam na janela de casa, esculpindo, tirando pequenas aparas de madeira, fazendo caracóis. Procurando o nada. Escreve-se para chegar ao nada. O enredo, por exemplo, é uma das coisas menos importantes no romance. É o artifício que o autor usa para prender o leitor, para engabelá-lo enquanto bate sua carteira.

Folha - E o que rouba?
Dourado -
A emoção dele, sentir que ele está preso ao livro, que você o tem pela mão. E não que ele esteja com você na mão.

Folha - Escrever, então, é artifício, e não inspiração?
Dourado -
Há na palavra inspiração uma certa traição. Eu prefiro "idéia súbita". Quando me vem uma idéia súbita, eu a cultivo até encontrar a forma do romance.

Folha - E sobre a possível morte do romance, que, depois das vanguardas, tanto se vaticina?
Dourado -
Quando o Fernando Sabino foi passar uma temporada na Europa, ele voltou e me disse: "Você está perdendo seu tempo. O romance morreu". Eu disse: "Ô, Fernando, você está me dando uma notícia tristíssima. Porque eu acabei de deixar um romance na editora. Justo hoje você vem me comunicar a morte de um parente meu?". Não morreu. O europeu é que é muito preocupado com essas coisas.

Folha - E não vai morrer?
Dourado -
Se vai morrer, eu não posso dizer, porque quem pode morrer antes sou eu.

Folha - No momento, o senhor está escrevendo alguma coisa?
Dourado -
Estou preparando um livro, mas nunca mostro antes de estar pronto. Mas estou escrevendo com muita dificuldade porque estou muito preocupado com aquilo que é permanente na literatura. Que é o valor literário, sobretudo os valores formais. É um peso que aumenta com o passar do tempo. O peso de já ter escrito.


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