São Paulo, sábado, 30 de julho de 2005

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FÁBULA/"CACHORROS DO CÉU"

Bueno desarma expectativas morais

HEITOR FERRAZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

O escritor Wilson Bueno tem uma versatilidade com a linguagem que o faz mergulhar nos manejos e traquejos do estilo do século 19, mixar uma língua entre o português, o espanhol e o guarani, como ainda dar estilo -e graça- aos bichos de um engenhoso fabulário. Depois de lançar, ainda no ano passado, o romance "Amar-te a Ti nem Sei se com Carícias", numa linguagem passadista e crítica, o escritor e poeta abre o bico dos bichos em "Cachorros do Céu", que acaba de sair pela Planeta, com ilustrações de Ulysses Bôscolo.
Antes, porém, de comentar o novo livro, é preciso dizer que não é a primeira vez que Bueno busca no reino da bicharada seus personagens. Em 1991, ele lançou o livro "Manual de Zoofilia". Depois, em 1999, saiu "Jardim Zoológico". Seguindo velha tradição literária e popular, Bueno dá voz aos animais para poder abordar "a nossa quase sempre insensata vida dita humana", como ele mesmo comentou numa entrevista ao jornalista Marcelo Pen, crítico da Folha, no site Trópico.
Dizer que é o homem e a maneira como ele vive hoje que estão na mira deste exímio caçador, cuja arma é uma linguagem afinadíssima, seria bastante redutor e tornaria suas 23 fábulas menos interessantes. É importante dizer que elas não têm nada do puxão de orelha moralista de um La Fontaine, por exemplo. Em Bueno, o desejo é sacudir o leitor e desarmar as expectativas moralizantes.
As histórias são contadas meio que ao sabor da própria linguagem, que lança mão de pastiches e ironias e, ao mesmo tempo, tem sutilezas extremamente poéticas. É como se o escritor se divertisse ao contá-las e as fosse desenredando durante a própria escrita. O acaso e a necessidade vão dirigindo o enredo.
É assim que, muitas vezes, quando uma história -de um galo cantor, que se chamava Lindolf e amava "sem conta, dia e noite, noite e dia, frangas velhas e frangas novas", ou de uma formiga chamada Ingrid, ou ainda de um rato, o Rildo- vai descambando para um tom demais filosófico, ou vai ficando enroscada, um macaco, que incorpora a figura do bom e velho malandro, surge em salvação, mudando o rumo de tudo.
Numa das fábulas, por exemplo, a virada é total. O narrador fala de uma lebre, "em cujo coração o amor demais fincou badeiritas agudas feito agulhas". Ela estava apaixonada por Erivelto, o Gato, mas morria de ciúmes, pois ele muitas vezes a deixava para sair com "as deslumbrosas da meia-noite, gatorrachas vadias de boquinha lamê". Quando a história caminha para o tom melancólico, com a lebre abandonada, o narrador entra em cena e diz: "Mas como fábula sem macaco não é fábula, apareceu o Macaco".
"Cachorros do Céu" mais uma vez coloca em circulação o estilo preciso e debochado deste escritor paranaense que, de certa forma, tem também um quê destes macacos criados por ele: sempre atento ao nosso mundo e ao da "Floresta", balança e sacode os galhos previsíveis da prosa brasileira contemporânea.


Heitor Ferraz é jornalista e autor de "Coisas Imediatas" (7 Letras)

Cachorros do Céu
    
Autor: Wilson Bueno
Editora: Planeta
Quanto: R$ 27 (96 págs.)


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