São Paulo, quarta-feira, 30 de julho de 2008

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MARCELO COELHO

O direito de beber


Começaremos discutindo miligramas e terminaremos discutindo propinas

NA MAIOR PARTE dos assuntos, gosto de não ser muito radical. Por isso simpatizei com as críticas à famosa lei seca, que torna, segundo dizem, passíveis de multa até os motoristas que consumirem um bombom de licor além da conta.
As autoridades deveriam, pensei, ser um pouco mais liberais na dose.
Com certeza, os benefícios da medida se devem sobretudo ao rigor da fiscalização, sempre novidadeira, e não à adstringência severíssima do limite alcoólico estipulado na lei.
Mas os números me fazem mudar de opinião. É muita gente que deixa de ser morta e atropelada, muitos leitos e gastos hospitalares que se liberam para outros fins, muita tragédia que se evita, muita estupidez que diminui; e não coloco meus princípios de moderação liberal acima dos ganhos obtidos com a lei.
Talvez eu esteja reagindo emocionalmente às notícias. Em todo caso, aqui vai uma: o número de atendimentos por atropelamento, quedas de moto e colisões de carro foi de 9.102 nos hospitais estaduais da região metropolitana. Isso, de 19 de maio a 18 de junho deste ano. Do dia 19 de junho, quando a lei foi sancionada, a 20 de julho, o número caiu para 4.449.
Menos que a metade! Só posso torcer para que a lei seja mantida.
"Às favas com os princípios", então? Tento racionalizar um pouco minha defesa da lei seca.
Imagino o que aconteceria se o limite de tolerância fosse aumentado um pouquinho. Digamos duas cervejas, uma dose de uísque, algo assim.
A alteração nos reflexos, convenhamos, não haveria de ter conseqüências assassinas na maior parte dos casos. O risco não está aí.
Mas nem todo mundo tem um "bafômetro moral" tão regulado assim. Penso na grande quantidade de pessoas que, depois de uma taça de vinho, há de fazer o seguinte cálculo:
"ora, uma taça a mais ainda está no limite permitido pela lei... O que são duas taças, afinal de contas?".
O sujeito sai de carro e, digamos, topa com as autoridades de trânsito.
Estas verificam que a quantidade de álcool no sangue do cidadão está um pouquinho acima do permitido pela lei, mas não tanto assim que mereça punição. "Quanto deu aí? 0,42 miligramas por litro? Ou 0,44?" Cabe multa?
Começaremos discutindo miligramas e terminaremos discutindo propinas. Ocorreria mais ou menos o que se dava nos tempos da inflação, quando uma taxa de 13% ao mês era relativamente "tolerável" quando as apostas do mercado previam 15,5%...
Muitas reclamações contra a lei se voltam contra a excessiva intervenção do Estado. Haveria paternalismo e forte tendência autoritária quando se presume que todo cidadão é incapaz de ser sensato, de moderar-se etc. Esse paternalismo existe, e seria absurdo, por exemplo, se as autoridades quisessem controlar o consumo de gorduras ou sorvetes de cada indivíduo. Cada um deve, em última análise, cuidar de si mesmo.
O problema, no caso do álcool, é que o cidadão é responsável, sensato, moderado, antes de ingerir a primeira dose. Depois da primeira dose, não sei se já se pode dizer, de todas as pessoas, que são perfeitamente donas de seu nariz. A tutela do Estado é perigosa; a tutela do álcool também. Mais ainda, talvez.
De resto, o cidadão que toma um bom vinho no jantar pode perfeitamente tomar um bom táxi para voltar para casa. A revolta contra a lei seca, em certa medida, resume-se a uma revolta contra o táxi; e há nis- so muito de revelador sobre a nossa sociedade.
É que, no Brasil, os Direitos da Pessoa Humana se identificam, sobretudo, com os Direitos do Motorista Particular. O direito atingido pela lei seca não é o direito de beber, é o direito de guiar; algo de sagrado parece cercá-lo em nosso país.
Ao lado disso, a lei tem certamente algo de ofensivo contra quem sempre bebeu pouco antes de dirigir. Um indivíduo que se mantém perfeitamente sensato à mesa de bar vê, do dia para a noite, criminalizado o seu comportamento; jogam-no na vala comum dos assassinos potenciais.
É justo que pessoas assim se sintam revoltadas. Infelizmente, nunca vi muitos cidadãos sensatos nos bares que visitei. Verdade que ando precisando de um exame de vista; qualquer dia me tiram a carta por causa disso.

coelhofsp@uol.com.br


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