São Paulo, sábado, 30 de julho de 2011

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CRÍTICA CORRESPONDÊNCIA

"Cartas Iluministas" ressalta ironia e contradições da vida do filósofo Voltaire

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Dizem que o francês Voltaire (1694-1778) trabalhava 15 horas por dia.
Além de contos filosóficos como "Cândido ou o Otimismo", textos polêmicos, tragédias e poemas, ele escreveu milhares de cartas.
Cerca de 17 mil, segundo a contracapa desta boa coletânea da Zahar; mais de 20 mil, segundo outras edições.
"Cartas Iluministas", com apresentação e notas de André Telles e Jorge Bastos, reúne 144 delas (e não "mais de 150", como diz a contracapa).
Mais do que concentrar-se no "iluminismo" de Voltaire, como defensor da tolerância religiosa, do progresso e da razão, esta coletânea ressalta as contradições e o dinamismo de sua personalidade.
Há o Voltaire literato, beletrista, discutindo as tragédias que fizeram sua fama no começo da carreira.
Há o cortesão, o bajulador de meia-idade, escrevendo para a imperatriz Catarina da Rússia, para o rei Frederico, o Grande, da Prússia, e até para o papa Bento 14, agradecendo uma honraria. Há também o industrioso e riquíssimo ancião dos últimos anos, envolvido na produção de relógios de luxo.
Estas "Cartas Iluministas" podem ser lidas, assim, como uma pequena ilustração da biografia do autor e não tanto como um apanhado de suas ideias filosóficas.
O subtítulo do volume nos informa que ali está incluída também "a querela entre Rousseau e Voltaire".
Não é mentira, mas também não é totalmente verdade.
Os organizadores tomaram a decisão acertada de transcrever a resposta, digna e sombria, de Jean-Jacques Rousseau a uma carta em que Voltaire ironizava, de modo célebre, o "Discurso" em que Rousseau relacionava o desenvolvimento das artes e espetáculos à corrupção dos costumes.
"Dá vontade de andar de quatro, depois de ler o seu livro", diz Voltaire.
"Não obstante, como perdi tal hábito há mais de sessenta anos, desgraçadamente sinto ser impossível recuperá-lo, e deixo essa postura natural aos que são mais dignos dela que o senhor e eu."
Nos anos seguintes, a "querela" teria, entretanto, outros capítulos, não incluídos no volume, envolvendo a situação de Rousseau em Genebra e terminaria com este dizendo a Voltaire: "Eu vos detesto, senhor; eu vos odeio".
De qualquer modo, o extrato acima serve para mostrar o tom, inimitável em suas cabriolas, que Voltaire exibe em todas as cartas deste livro.
Mesmo nas mais formais, assim como nas mais espontâneas, Voltaire encontra uma forma graciosa de se despedir, de se queixar, de pedir um favor.
É sempre um prazer ver esse espírito em funcionamento, especialmente quando acompanhado das ótimas notas dos organizadores.
Nesse aspecto, cabe apenas um reparo desimportante. O Saint-Didier a quem Voltaire se refere na página 45 não é Henry (séc. 16), como diz a nota de rodapé, mas seu contemporâneo Limajon de Saint-Didier (1669-1739), um obscuro dramaturgo.

CARTAS ILUMINISTAS
AUTOR Voltaire
EDITORA Zahar
TRADUÇÃO André Telles e Jorge Bastos
QUANTO R$ 39 (232 págs.)
AVALIAÇÃO bom




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