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NELSON ASCHER
As humanidades estão mortas
Quem se forma em medicina
ou engenharia é, respectivamente, médico ou engenheiro.
Um diploma de direito é pré-condição para que seu portador possa advogar, se tornar juiz, desembargador. Os que concluem cursos de economia viram geralmente economistas. O que acontece,
porém, com aqueles que cursaram letras, filosofia, artes plásticas? Será que sua formação faz
deles escritores ou críticos, filósofos ou artistas? Que tipo de qualificação conquista quem estude as
humanidades numa entidade oficialmente consagrada a seu ensino?
Medicina ou engenharia são
disciplinas fundamentadas num
saber que é consensual para seus
praticantes e se assimila sobretudo na sala de aula ou no laboratório sob a supervisão de alguém
que o domina e, depois, mediante
o estudo em casa orientado pelos
professores. Devido ao seu caráter
cumulativo e às interconexões entre suas partes, o aluno não está
preparado para o tópico B antes
de ter provado que aprendeu o tópico A.
E quanto às humanidades? É
mesmo necessário ter enfrentado
a "Escrava Isaura" para degustar
"Serafim Ponte Grande", ou a
"Odisséia" (em grego) e a "Eneida" (em latim) para apreciar "Os
Lusíadas"? Talvez seja melhor
consultar uma história da expansão colonial portuguesa dos séculos 15 e 16 ou tratados sobre a Velha República? Quem sabe, boas
biografias de Oswald ou de Camões seriam mais úteis, para nem
falar dos volumes escritos por Lênin e Hobson sobre o imperialismo, ou "A Teoria do Romance"
de Georg Lukács? Sem dúvida, o
ideal seria tentar tudo isso e mais.
Qual é, contudo, a proporção desse empenho que requer um professor?
Se pensarmos na criação, as
complicações se multiplicam.
Quantos romances um candidato
a romancista tem de ler antes de
começar o seu? Cem? Mil? Nenhum? E quais? Cursos de literatura criativa servem para alguma
coisa? Há um currículo mínimo
para poetas, dramaturgos, pintores? Thomas Mann leu Cervantes,
mas a recíproca não é válida.
Quem deduziria daí que "A Montanha Mágica" é melhor do que
"Dom Quixote"? No entanto, o
principal cardiologista do século
19 seria incapaz de realizar uma
cirurgia como a ponte de safena e
o melhor engenheiro da época ficaria embasbacado diante de um
laptop. Embora muitos vivam felizes desconhecendo Cervantes ou
Thomas Mann, nossa existência
terrena seria mais árdua (e breve)
sem antibióticos assim, como seria impossível habitar megalópoles sem o motor à combustão interna e a eletricidade.
Então, por que ainda existem
faculdades de letras e disciplinas
afins? É um segredo de polichinelo que o grosso de seus alunos está
onde está por inércia, pois, embora desejem um diploma universitário, preferem não se submeter a
vestibulares difíceis ou se dedicar
a cursos exigentes. Daí que apenas uma minoria entre eles faça
em tais campos uma carreira digna desse nome. Para o restante,
anos de ensino superior são uma
garantia de desemprego, subemprego e frustração.
E se, em certas sociedades, os
"letrados" desfrutam de um prestígio equivalente ao dos antigos
sábios, o mundo atual se parece
cada vez mais com os EUA, onde
os entendidos não são ouvidos exceto quando falam sobre aquilo
de que entendem. Eis uma das
raízes do antiamericanismo estridente da intelectualidade européia, terceiro-mundista e mesmo
norte-americana: não é um desacato para professores universitários, escritores e artistas que, na
hora das eleições, suas opiniões
valham tanto quanto a do encanador ou do balconista?
As razões históricas graças às
quais as universidades nasceram
e se organizaram ao redor das disciplinas em questão não passam
agora, bom, de história, uma história em cujo capítulo final as humanidades permitiram que sua
propensão universalizante se degradasse em especialidades ridículas protegidas por jargões grotescos. Se a globalização der certo,
um número crescente de pessoas
não só buscará conhecimentos
práticos no ensino superior, como
também voltará diversas vezes a
suas instituições para se reciclar
ou, o que ocorrerá com freqüência, para mudar de ramo quando
o seu se torne obsoleto. Caso a integração econômica do planeta
fracasse, os afortunados terão
tempo somente para cuidar de
suas roças.
O saber humanístico está morto. Viva o saber humanístico.
Não obstante a verba destinada
a seus núcleos universitários cair
dia a dia e a qualidade de seus
professores e alunos piorar incessantemente, nada indica que o interesse real pela literatura e filosofia, pelas artes plásticas ou história venha minguando. Pelo contrário. Sucede que, em vez de adolescentes que acabaram estudando Guimarães Rosa, Nietzsche, o
pós-impressionismo ou a Guerra
dos Trinta Anos por acaso ou acidente, cresce a quantidade de profissionais bem-sucedidos, médicos
e analistas financeiros, advogados tributaristas e peritos em software que, tão logo se estabilizam
em suas carreiras e encaminham
as dos filhos, dispõem de horas vagas, capacidade mental ociosa e
dinheiro suficiente para investi-los no que quiserem.
Estamos curiosamente retornando a uma situação similar à
do século 18 ou antes, quando os
preceptores ganhavam seu pão
instruindo informalmente a aristocracia e a burguesia ascendentes. Não é o Estado ou os contribuintes (não consultados) que
salvarão as humanidades, mas a
classe média. Seu membros, através, por exemplo, de cursos livres,
contratarão conhecedores aptos a
instruí-los, orientar-lhes a leitura
etc. e, o que é ótimo para essas disciplinas, se bem que não necessariamente para a maioria de seus
profissionais, vão selecioná-los
menos sob a influência de títulos e
renome do que de acordo com
seus méritos.
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