São Paulo, segunda-feira, 30 de agosto de 2004

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NELSON ASCHER

As humanidades estão mortas

Quem se forma em medicina ou engenharia é, respectivamente, médico ou engenheiro. Um diploma de direito é pré-condição para que seu portador possa advogar, se tornar juiz, desembargador. Os que concluem cursos de economia viram geralmente economistas. O que acontece, porém, com aqueles que cursaram letras, filosofia, artes plásticas? Será que sua formação faz deles escritores ou críticos, filósofos ou artistas? Que tipo de qualificação conquista quem estude as humanidades numa entidade oficialmente consagrada a seu ensino?
Medicina ou engenharia são disciplinas fundamentadas num saber que é consensual para seus praticantes e se assimila sobretudo na sala de aula ou no laboratório sob a supervisão de alguém que o domina e, depois, mediante o estudo em casa orientado pelos professores. Devido ao seu caráter cumulativo e às interconexões entre suas partes, o aluno não está preparado para o tópico B antes de ter provado que aprendeu o tópico A.
E quanto às humanidades? É mesmo necessário ter enfrentado a "Escrava Isaura" para degustar "Serafim Ponte Grande", ou a "Odisséia" (em grego) e a "Eneida" (em latim) para apreciar "Os Lusíadas"? Talvez seja melhor consultar uma história da expansão colonial portuguesa dos séculos 15 e 16 ou tratados sobre a Velha República? Quem sabe, boas biografias de Oswald ou de Camões seriam mais úteis, para nem falar dos volumes escritos por Lênin e Hobson sobre o imperialismo, ou "A Teoria do Romance" de Georg Lukács? Sem dúvida, o ideal seria tentar tudo isso e mais. Qual é, contudo, a proporção desse empenho que requer um professor?
Se pensarmos na criação, as complicações se multiplicam. Quantos romances um candidato a romancista tem de ler antes de começar o seu? Cem? Mil? Nenhum? E quais? Cursos de literatura criativa servem para alguma coisa? Há um currículo mínimo para poetas, dramaturgos, pintores? Thomas Mann leu Cervantes, mas a recíproca não é válida. Quem deduziria daí que "A Montanha Mágica" é melhor do que "Dom Quixote"? No entanto, o principal cardiologista do século 19 seria incapaz de realizar uma cirurgia como a ponte de safena e o melhor engenheiro da época ficaria embasbacado diante de um laptop. Embora muitos vivam felizes desconhecendo Cervantes ou Thomas Mann, nossa existência terrena seria mais árdua (e breve) sem antibióticos assim, como seria impossível habitar megalópoles sem o motor à combustão interna e a eletricidade.
Então, por que ainda existem faculdades de letras e disciplinas afins? É um segredo de polichinelo que o grosso de seus alunos está onde está por inércia, pois, embora desejem um diploma universitário, preferem não se submeter a vestibulares difíceis ou se dedicar a cursos exigentes. Daí que apenas uma minoria entre eles faça em tais campos uma carreira digna desse nome. Para o restante, anos de ensino superior são uma garantia de desemprego, subemprego e frustração.
E se, em certas sociedades, os "letrados" desfrutam de um prestígio equivalente ao dos antigos sábios, o mundo atual se parece cada vez mais com os EUA, onde os entendidos não são ouvidos exceto quando falam sobre aquilo de que entendem. Eis uma das raízes do antiamericanismo estridente da intelectualidade européia, terceiro-mundista e mesmo norte-americana: não é um desacato para professores universitários, escritores e artistas que, na hora das eleições, suas opiniões valham tanto quanto a do encanador ou do balconista?
As razões históricas graças às quais as universidades nasceram e se organizaram ao redor das disciplinas em questão não passam agora, bom, de história, uma história em cujo capítulo final as humanidades permitiram que sua propensão universalizante se degradasse em especialidades ridículas protegidas por jargões grotescos. Se a globalização der certo, um número crescente de pessoas não só buscará conhecimentos práticos no ensino superior, como também voltará diversas vezes a suas instituições para se reciclar ou, o que ocorrerá com freqüência, para mudar de ramo quando o seu se torne obsoleto. Caso a integração econômica do planeta fracasse, os afortunados terão tempo somente para cuidar de suas roças.
O saber humanístico está morto. Viva o saber humanístico.
Não obstante a verba destinada a seus núcleos universitários cair dia a dia e a qualidade de seus professores e alunos piorar incessantemente, nada indica que o interesse real pela literatura e filosofia, pelas artes plásticas ou história venha minguando. Pelo contrário. Sucede que, em vez de adolescentes que acabaram estudando Guimarães Rosa, Nietzsche, o pós-impressionismo ou a Guerra dos Trinta Anos por acaso ou acidente, cresce a quantidade de profissionais bem-sucedidos, médicos e analistas financeiros, advogados tributaristas e peritos em software que, tão logo se estabilizam em suas carreiras e encaminham as dos filhos, dispõem de horas vagas, capacidade mental ociosa e dinheiro suficiente para investi-los no que quiserem.
Estamos curiosamente retornando a uma situação similar à do século 18 ou antes, quando os preceptores ganhavam seu pão instruindo informalmente a aristocracia e a burguesia ascendentes. Não é o Estado ou os contribuintes (não consultados) que salvarão as humanidades, mas a classe média. Seu membros, através, por exemplo, de cursos livres, contratarão conhecedores aptos a instruí-los, orientar-lhes a leitura etc. e, o que é ótimo para essas disciplinas, se bem que não necessariamente para a maioria de seus profissionais, vão selecioná-los menos sob a influência de títulos e renome do que de acordo com seus méritos.


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