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CONTARDO CALLIGARIS
Vida estética
Nossa paixão pelo "look" e pelo design tenta construir um mundo que faça sentido
A CADA sexta-feira, é noite de
Green Express: em São Paulo,
na avenida Rio Branco nš 90,
dança-se samba-rock.
A turma, embora goste da mesma
música, não é uniforme. Há os malhados e os que carregam consigo 30
quilos acima da média. Há homens
de terno, chapéu e sapatos de duas
cores, à la Michael Jackson ou à la
Rio de Janeiro anos 30; outros com
camiseta de time americano e touca
de couro; outros tipo "roots" (camisa frouxa para fora das calças); outros são "preppy" (pólo justa). E por
aí vai. Do lado das mulheres, mesma
variedade.
É um bom lugar para descobrir
que não há grau zero do estilo: se você cultiva a ilusão de não se importar
com as aparências, saiba que seu
"descaso" é mais uma escolha estética entre outras.
Comecei com uma noite no
Green, mas poderia ter começado
com um passeio por um supermercado. Observando os objetos à venda, mesmo os mais utilitários (um
saca-rolhas, uma toalha de prato),
chegaria à mesma conclusão: nossas
escolhas respeitam a racionalidade
(a roupa tem que nos vestir e a faca
tem que cortar), mas são orientadas
por considerações estéticas: gostamos de um "look". E não é preciso
que seja o mesmo para todos: não
procuramos um cânone, apenas
queremos que nosso gosto ordene
um pouco o mundo.
Nas últimas décadas, passamos do
ideal de um consumo de massa
(mesma geladeira para todos) a um
ideal de consumo personalizado, em
que o estilo e o design comandam
nossas escolhas.
Esse fenômeno, dificilmente discutível, está no centro do trabalho
de Virginia Postrel, recentemente
entrevistada pelo caderno Mais!
(29 de julho) por seu livro de 2003,
"The Substance of Style" (a substância do estilo, HarperCollins).
A relevância das escolhas estéticas no comportamento e no consumo das últimas cinco décadas é
tradicionalmente explicada segundo dois eixos: 1) Nosso sistema produtivo, depois de promover o consumo de massa, para continuar
crescendo, incentiva a diversificação do consumo; 2) Vivemos numa
sociedade em que o lugar de cada
um depende do olhar dos outros;
portanto, a sedução estética que
conseguimos exercer (graças a
nossa pessoa e aos objetos que nos
cercam) torna-se crucial.
Postrel aceita essas explicações,
mas acrescenta o seguinte: se valorizamos as aparências é porque encontramos, nesse exercício estético, "prazer e sentido".
É fácil entender qual é o prazer
encontrado num exercício estético
generalizado: é o prazer de se expressar singularmente e de compor, para si mesmo e para os outros, uma imagem agradável.
Mais complicado é entender como essa atividade estética incessante nos ajudaria a encontrar um
pouco de sentido para nossa vida.
Pois bem, se alguém me perguntasse, hoje, quais são, ao meu ver,
os textos filosóficos decisivos para
entender o espírito moderno, eu
incluiria entre os cinco primeiros,
sem hesitar, a "Crítica da Faculdade do Juízo", de Kant (Forense
Universitária). O livro, escrito no
fim do século 18, não é uma leitura
fácil. Quando o li, nos anos 70, foi
por dever. Hoje, no retrospecto,
considerando a extraordinária relevância da escolha estética na vida
moderna das últimas décadas, ele
me parece profético e genial.
Resumindo além do máximo,
uma das idéias centrais de Kant é a
seguinte: apreciamos o belo porque é o exemplo de algo que se justifica em si, ou seja, que tem um
fim e uma razão de ser, mas esse
fim não é uma idéia ou uma representação externa, ele está na coisa
mesma que achamos bela. A beleza, por assim dizer, é o charme das
coisas, dos seres e dos momentos
que não precisam de uma justificação outra que sua beleza.
Por exemplo, uma cena qualquer
da vida, contemplada da mesa de
um bar, levanta questões: o que
quer aquela mulher? Para onde está indo aquele cara? Qual será o futuro do cachorro que passa por aí?
Numa "bela" fotografia da mesma
cena, a questão da finalidade da vida da mulher, do cara e do cachorro é resolvida pela finalidade interna da imagem, por sua "beleza".
Ora, em nossa cultura, a tradição
perdeu valorm, e o plano divino é,
no mínimo, incerto: as representações e idéias que davam sentido à
vida são cada vez mais problemáticas. Talvez nossa paixão cotidiana
pelo "look" e pelo design tente, laboriosamente, construir um mundo que se justifique por sua qualidade estética, ou seja, por si só.
ccalligari@uol.com.br
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