São Paulo, sábado, 30 de agosto de 2008

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LIVROS

Crítica/"Ao Mesmo Tempo"

Ensaios mostram Sontag atrevida

Textos produzidos pela americana ao fim da vida traduzem antiga luxúria de temas insólitos, mas agora motivados pela doença

SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Organizada e prefaciada pelo filho, David Rieff, a atual coleção de ensaios e discursos de Susan Sontag (1933-2004) é bem representativa do alto poder analítico e reflexivo da intelectual e ativista norte-americana. Escritos ao final da vida, os textos continuam a traduzir, agora pelo modo da doença (como veremos adiante), a antiga luxúria de temas insólitos e atualíssimos, aproximados de maneira atrevida. A linguagem ensaística convence e se impõe por formulações audaciosas. Sontag não ficou na janela a ver a banda do novo milênio passar; saiu à frente, malabarista dos mil objetos que atira ao ar. Distante da cátedra universitária e presente na atualidade de jornais e revistas culturais, a carreira de Sontag tem mais a ver com as de Edmund Wilson (1895-1972) e de Lionel Trilling (1905-1975), para citar só dois, que com a da multidão de scholars acadêmicos, seus contemporâneos. Os ensaios dela não se empertigam nas notas de pé de página e não se dão como imbatíveis por se esconderem atrás de vastíssima bibliografia. Os scholars costumam chover no molhado, e ela, na horta. Com delicadeza filial, o prefaciador observa que, se tivesse de escolher uma única palavra para evocá-la, seria "avidez". Observa: "Ela queria experimentar tudo, provar tudo, ir a toda parte, fazer tudo". E arremata: "Talvez fosse a gama dos seus interesses aquilo que era difícil apreender e impossível de acompanhar". Enquanto historiadores da arte e críticos da literatura trabalham a parcimônia zoológica, ela trabalhava o acúmulo industrial. Vista do túmulo, para onde foi levada antes do tempo por doença maligna, sua vasta e diversificada obra tem a ver com as esculturas do francês César. Comprimidos pela memória do leitor e admirador, seus livros ganham a consistência de massa multicolorida e geométrica. Espelham uma concepção de "novo realismo" (para ficar com a etiqueta dos críticos de arte), prevalecente na segunda metade do século 20. E é da perspectiva do túmulo que melhor se lê "Ao Mesmo Tempo". De preferência acompanhado do romance póstumo de Joseph Heller, "Retrato do Artista Quando Velho", publicado pela Cosac Naify e tolamente negligenciado pelos brasileiros. A imaginação do velho romancista é fértil. Formula e acumula planos infindáveis. Falta-lhe força para levar a cabo cada projeto maravilhoso. O romance de Heller é um acúmulo de capítulos semelhantes aos contos de Borges. Para que escrever um único romance, se você pode sintetizar muitos em capítulos admiráveis?

Morte iminente
O que a doença tem a ver com a expressão ensaística, quando a ela se acopla a possibilidade da morte iminente? Surge sem dúvida uma desestruturação da antiga lógica argumentativa. A escrita cadenciada, convincente e rigorosa passa a ser pespontada pelos raios luminosos da erudição acumulada por décadas de experiência e leitura. Deles retira a força resignada. A antiga avidez luxuriosa de Sontag perdeu os retorcidos do discurso lógico e barroquista, transmitidos pela frase engenhosa, para encontrar uma formulação sintética e, sem dúvida, de maior contundência junto ao leitor-intérprete. Não sabia, e me tranqüilizou saber pelas palavras do filho que, antes de morrer, Sontag planejava escrever alguns ensaios, "em especial um sobre o pensamento aforístico, tema pelo qual se interessava fazia algum tempo". Ali também se anuncia a futura publicação de "cadernos de notas". Retrato da ensaísta quando doente. A avidez encontrou o caminho da sabedoria na expressão aforística, cujos melhores exemplos são o ensaio "Fotografia: Uma Pequena Suma" e o discurso "A Consciência das Palavras". Menos pela lógica argumentativa e mais pelo pensamento aforístico é que o leitor melhor adentra na coleção póstuma. Não havia mais tempo hábil para o desenvolvimento circunstanciado e lento da argumentação. Leia-se o ensaio "1926...". O raciocínio tinha de ser dado sem fintas, de chofre, de preferência numa forma fechada, uma forma simples, para me valer da categoria estudada por André Jolles ("Formas Simples", ed. Cultrix, 1976). A extraordinária experiência e a invejável erudição da autora nunca deixam a peteca cair no lugar-comum, ou na tirada bem-humorada, que se tornou chave-mestra no mercado cultural das celebridades, dominado pelos verbos com final em -ar: falar, agradar e afagar. Como antídoto, leia-se "Literatura é Liberdade". A expressão aforística -a frase de "Ao Mesmo Tempo" é tão percuciente quanto a faca só lâmina de João Cabral de Melo Neto.

SILVIANO SANTIAGO é crítico literário e escritor.

AO MESMO TEMPO
Autora: Susan Sontag
Tradução: Rubens Figueiredo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 44 (248 págs.)
Avaliação: ótimo

TRECHO

1. Fotografia é, antes de tudo, um modo de ver. Não é a visão em si mesma.
2. É a maneira inelutavelmente "moderna" de ver -predisposta em favor de projetos de descoberta e inovação.
3. Essa maneira de ver, que agora tem uma longa história, molda aquilo que procuramos perceber e estamos habituados a distinguir nas fotografias.
4. A maneira moderna de ver é ver em fragmentos. Tem-se a sensação de que a realidade é essencialmente ilimitada e o conhecimento não tem fim. Segue-se que todas as fronteiras, todas as idéias unificadoras têm de ser enganosas, demagógicas; na melhor hipótese, temporárias; a longo prazo, quase sempre falsas. Ver a realidade à luz de certas idéias unificadoras tem a vantagem inegável de dar forma e feição à nossa experiência. Mas também -assim nos instrui a maneira moderna de ver- nega a infinita variedade e complexidade do real. Desse modo reprime a nossa energia, a rigor o nosso direito, de refazer o que queremos refazer -a nossa sociedade, nós mesmos. O que é liberador, assim nos dizem, é perceber cada vez mais. [...]
8. Uma foto é um fragmento -um relance. Acumulamos relances, fragmentos. Todos nós estocamos mentalmente centenas de imagens fotográficas, que podem ser lembradas de modo instantâneo. Todas as fotos aspiram à condição de ser memoráveis -ou seja, inesquecíveis.

Extraído de "Ao Mesmo Tempo", de Susan Sontag



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