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COMENTÁRIO
Reinvenção é marca da MPB
WALTER SALLES
COLUNISTA DA FOLHA
Chacrinha dizia que não tinha vindo ao mundo para
explicar, e sim para confundir. Na
introdução de "Música Popular
Brasileira Hoje", 50º volume da
Folha Explica, aprendemos que
"música" vem do grego "mousikos", que diz respeito às musas;
popular, do latim "popularis", do
povo; "Brasil", etimologia variada, podendo vir do provençal
"brezill", coisa fragmentada.
O país fragmentado talvez ganhe unidade, justamente, na soma das tantas correntes musicais
que possui. É o que se desprende
da leitura dessa antologia organizada por Arthur Nestrovski, que
reúne 99 artistas que fazem música no Brasil hoje -de A(driana
Calcanhoto) a Z(izi Possi), de
João Gilberto a Sepultura, passando por nomes tão diversos quanto
Racionais MCs, Hermeto Pascoal
ou Lia de Itamaracá.
São 99 tabelinhas entre um músico e aquele que o apresenta. Alguns exemplos: o craque Antonio
Nóbrega é introduzido por Renato Janine Ribeiro, professor de ética e filosofia política. A mutante
Rita Lee, pelo escritor Milton Hatoum. O essencial Paulinho da
Viola, pelo artista plástico Nuno
Ramos. O múltiplo Nelson Sargento, por José Roberto Torero,
escritor, roteirista e especialista
em futebol.
Você já entendeu: é um pouco
como escalar os jogadores das seleções de 58, 62, 70, 82 e 2002 para
uma única partida -ou um único volume. Impossível não cometer injustiças ao realçar uma ou
outra colaboração.
Os textos são sintéticos. Informam e contextualizam, sem cair
em um didatismo normativo. Tecem muitas vezes a ponte entre o
erudito e o popular, como acontece na apresentação de Moacir
Santos (Sérgio Augusto) ou Naná
Vasconcelos (Antonio Gonçalves
Filho). Vão nos oferecendo, pouco a pouco, uma síntese possível
do continente musical em que vivemos. E, por extensão, do próprio país.
Alguns exemplos: em seu texto
sobre Chico Buarque, a psicanalista Maria Rita Kehl sugere que
cada brasileiro tem dupla cidadania, a do país de cada dia e a da
música popular brasileira -"o
país sonoro e multirracial, sem
potestades e sem excluídos". Essa
percepção de que "minha música
é minha pátria" permeia o livro de
Nestrovski como um todo.
Nesse país, Lenine foi..."repavimentando a ponte antropofágica-tropicalista que norteou boa parte
da cultura nacional do século 20"
(Pedro Alexandre Sanches), e "a
vanguarda paulistana foi um retrato em preto-e-branco da aquarela do Brasil" (Fernando de Barros e Silva, sobre Arrigo Barnabé).
Há questões urgentes, que vão
requerer um debate mais aprofundado. Alcino Leite Neto, por
exemplo, sugere em seu texto sobre Bebel Gilberto que "a MPB
nasceu do confronto e do diálogo
das elites com as classes baixas.
Ela se desenvolveu como projeto
interclassista, manifestando uma
utopia nacional. Extinta como tal,
depois que se acentuaram os atritos sociais no país, a MPB é hoje
apenas uma sigla nostálgica no
Brasil".
Há vários textos que vão em outra direção, conferindo a "Música
Popular Brasileira Hoje" uma
qualidade viva e dialética. É possível que nessa "enciclopédia para
sempre em construção", como a
define Arthur Nestrovski, alguns
notarão a falta de um ou outro
músico. Sinto, por exemplo, a ausência dos emboladores Castanha
e Cajuzinho. Mas bater em um time como esse, já ficou claro no
início, é golpe abaixo da cintura.
Voltando à proposta de Maria
Rita Kehl, retomada por Nestrovski: nesse país partido, de um
lado está tudo que nos fere; do outro, a música popular brasileira, a
terra sem mal dos tupis, constantemente reinventada. Bem-vindos a ela.
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