São Paulo, segunda-feira, 30 de setembro de 2002

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COMENTÁRIO

Reinvenção é marca da MPB

WALTER SALLES
COLUNISTA DA FOLHA

Chacrinha dizia que não tinha vindo ao mundo para explicar, e sim para confundir. Na introdução de "Música Popular Brasileira Hoje", 50º volume da Folha Explica, aprendemos que "música" vem do grego "mousikos", que diz respeito às musas; popular, do latim "popularis", do povo; "Brasil", etimologia variada, podendo vir do provençal "brezill", coisa fragmentada.
O país fragmentado talvez ganhe unidade, justamente, na soma das tantas correntes musicais que possui. É o que se desprende da leitura dessa antologia organizada por Arthur Nestrovski, que reúne 99 artistas que fazem música no Brasil hoje -de A(driana Calcanhoto) a Z(izi Possi), de João Gilberto a Sepultura, passando por nomes tão diversos quanto Racionais MCs, Hermeto Pascoal ou Lia de Itamaracá.
São 99 tabelinhas entre um músico e aquele que o apresenta. Alguns exemplos: o craque Antonio Nóbrega é introduzido por Renato Janine Ribeiro, professor de ética e filosofia política. A mutante Rita Lee, pelo escritor Milton Hatoum. O essencial Paulinho da Viola, pelo artista plástico Nuno Ramos. O múltiplo Nelson Sargento, por José Roberto Torero, escritor, roteirista e especialista em futebol.
Você já entendeu: é um pouco como escalar os jogadores das seleções de 58, 62, 70, 82 e 2002 para uma única partida -ou um único volume. Impossível não cometer injustiças ao realçar uma ou outra colaboração.
Os textos são sintéticos. Informam e contextualizam, sem cair em um didatismo normativo. Tecem muitas vezes a ponte entre o erudito e o popular, como acontece na apresentação de Moacir Santos (Sérgio Augusto) ou Naná Vasconcelos (Antonio Gonçalves Filho). Vão nos oferecendo, pouco a pouco, uma síntese possível do continente musical em que vivemos. E, por extensão, do próprio país.
Alguns exemplos: em seu texto sobre Chico Buarque, a psicanalista Maria Rita Kehl sugere que cada brasileiro tem dupla cidadania, a do país de cada dia e a da música popular brasileira -"o país sonoro e multirracial, sem potestades e sem excluídos". Essa percepção de que "minha música é minha pátria" permeia o livro de Nestrovski como um todo.
Nesse país, Lenine foi..."repavimentando a ponte antropofágica-tropicalista que norteou boa parte da cultura nacional do século 20" (Pedro Alexandre Sanches), e "a vanguarda paulistana foi um retrato em preto-e-branco da aquarela do Brasil" (Fernando de Barros e Silva, sobre Arrigo Barnabé).
Há questões urgentes, que vão requerer um debate mais aprofundado. Alcino Leite Neto, por exemplo, sugere em seu texto sobre Bebel Gilberto que "a MPB nasceu do confronto e do diálogo das elites com as classes baixas. Ela se desenvolveu como projeto interclassista, manifestando uma utopia nacional. Extinta como tal, depois que se acentuaram os atritos sociais no país, a MPB é hoje apenas uma sigla nostálgica no Brasil".
Há vários textos que vão em outra direção, conferindo a "Música Popular Brasileira Hoje" uma qualidade viva e dialética. É possível que nessa "enciclopédia para sempre em construção", como a define Arthur Nestrovski, alguns notarão a falta de um ou outro músico. Sinto, por exemplo, a ausência dos emboladores Castanha e Cajuzinho. Mas bater em um time como esse, já ficou claro no início, é golpe abaixo da cintura.
Voltando à proposta de Maria Rita Kehl, retomada por Nestrovski: nesse país partido, de um lado está tudo que nos fere; do outro, a música popular brasileira, a terra sem mal dos tupis, constantemente reinventada. Bem-vindos a ela.



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