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São Paulo, terça-feira, 30 de setembro de 2003

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BERNARDO CARVALHO

Sem alça

Em 1981, quase um século depois de "Madame X", retrato de uma socialite parisiense pintado pelo americano John Singer Sargent, ter causado escândalo na França, um pesquisador descobriu um detalhe que tinha sido encoberto e esquecido ao longo dos anos. Havia uma pequena diferença entre o quadro original, exposto pela primeira vez no Salão de 1884, em Paris, e a célebre tela que pertence ao acervo do Metropolitan, em Nova York: uma alça de vestido. O retrato teria sido retocado pelo próprio pintor logo depois do escândalo: a alça direita do vestido da socialite, que na versão original estava caída, insinuando uma certa sensualidade, voltou ao ombro da mulher.
Embora hoje pareça insignificante, o detalhe se tornou tema de um livro recém-lançado: "Strapless" ("Sem Alça: John Singer Sargent e a Queda de Madame X", ed. Tarcher/Penguin), de Deborah Davis. A biografia da autora ("executiva veterana da indústria cinematográfica") e o que lhe despertou o interesse de escrever o livro ("Desesperada por algo novo para usar numa cerimônia de entrega de prêmios em Hollywood, pedi ao estilista Nino Cerruti uma de suas criações emprestadas. (...) O vestido me fez lembrar algo...") dão ao leitor uma idéia do que ele tem nas mãos. E, no entanto, para além dos cosméticos, alguma coisa nessa história é de fato sensacional.
Sargent (1856-1925) nasceu em Florença, filho de um casal de americanos que passava a vida viajando pela Europa, perseguindo um padrão social que não condizia com suas posses. No conto "O Pupilo", de 1891, Henry James narra a história de um menino frágil e hiperdotado em situação semelhante: apesar de não terem dinheiro para nada, os pais vivem como alta burguesia e contam com o charme do filho para manter seu preceptor preso numa relação afetiva, não-remunerada.
Henry James e Sargent se conheceram em 1884, em Paris, e logo se tornaram amigos íntimos. O escritor quarentão deve ter reconhecido no jovem pintor americano e expatriado alguma coisa de si. Há quem veja nos melhores retratos de Sargent uma perspicácia de observação análoga à análise psicológica que o autor de "O Retrato de uma Senhora" faz de seus personagens. Um ano depois do encontro, o escritor conseguiu convencer o artista, contrariado com o escândalo provocado pelo retrato de "Madame X", a se mudar para Londres.
A família de Sargent tinha se instalado em Paris quando ele ainda era jovem para que pudesse estudar pintura. Logo o rapaz se revelou um talento promissor. Seus interesses, porém, estavam menos voltados a inovações estéticas do que a se afirmar como um artista consagrado e bem remunerado. Sargent decide ser retratista. Faz os contatos certos, frequenta a alta sociedade parisiense.
Em 1881, consegue pintar o retrato do célebre ginecologista e sedutor Samuel-Jean Pozzi, amante de Sarah Bernhardt, entre outras mulheres que o chamam de "doutor Amor". Pozzi é um personagem e tanto. Em 1886, quando tinha apenas 15 anos, o jovem Proust foi convidado pelo ginecologista amigo da família a jantar no Ritz pela primeira vez e acabou "retribuindo" o convite ao transformá-lo num médico imbecil e mundano, o doutor Cottard, em "Em Busca do Tempo Perdido". Sexagenário, o "doutor Amor" participava de orgias organizadas por sociedades secretas. E morreu em 1918, assassinado por um cliente que o acusava de tê-lo deixado impotente depois de uma operação no pênis.
O retrato que Sargent pintou do médico, vestido com um roupão vermelho, como um príncipe renascentista, foi visto por Oscar Wilde numa exposição em Londres e o teria inspirado a escrever "O Retrato de Dorian Gray". Foi também por intermédio de Pozzi que Sargent conheceu Amélie Gautreau, uma das amantes do ginecologista, nascida em Nova Orleans e casada com um rico advogado bretão. A jovem Madame Gautreau era um dos expoentes da nova burguesia parisiense. Cada um dos seus passos era calculado para fazê-la aparecer. O retrato que Sargent pintou dela, porém, foi um tiro pela culatra.
O quadro reunia de certa forma dois arrivistas. Exposto no Salão de 1884, prestigiosa exposição anual marcada por seu academicismo, o retrato de "Madame X" transformou a socialite em motivo de chacota. Tudo por causa da alça caída, vista por muitos como uma afronta imoral e um elemento calculista da parte do pintor.
Deborah Davis não tece maiores considerações estéticas sobre o trabalho de Sargent. Está mais interessada no fenômeno social que ele retrata: a frivolidade da alta burguesia européia e americana do final do século 19 (a descrição que a autora faz, em três linhas, da Comuna de Paris poderia ter saído da boca de uma colunável da Terceira República).
Consagrado dos dois lados do Atlântico como um dos maiores retratistas do seu tempo, Sargent acabou sendo considerado um pintor anacrônico e acadêmico no seu hedonismo estetizante. Andy Warhol admirava a qualidade da sua pintura. Há poucos anos, uma megaexposição itinerante entre Londres, Washington e Boston tentou resgatar o prestígio do pintor. Sinal de que, para o bem ou para o mal, há mais em comum entre o final do século 19 e o final do século 20 do que se pode imaginar.

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