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BERNARDO CARVALHO
Sem alça
Em 1981, quase um século depois de "Madame X", retrato
de uma socialite parisiense pintado pelo americano John Singer
Sargent, ter causado escândalo
na França, um pesquisador descobriu um detalhe que tinha sido
encoberto e esquecido ao longo
dos anos. Havia uma pequena diferença entre o quadro original,
exposto pela primeira vez no Salão de 1884, em Paris, e a célebre
tela que pertence ao acervo do
Metropolitan, em Nova York:
uma alça de vestido. O retrato teria sido retocado pelo próprio
pintor logo depois do escândalo: a
alça direita do vestido da socialite, que na versão original estava
caída, insinuando uma certa sensualidade, voltou ao ombro da
mulher.
Embora hoje pareça insignificante, o detalhe se tornou tema de
um livro recém-lançado: "Strapless" ("Sem Alça: John Singer
Sargent e a Queda de Madame
X", ed. Tarcher/Penguin), de Deborah Davis. A biografia da autora ("executiva veterana da indústria cinematográfica") e o que lhe
despertou o interesse de escrever o
livro ("Desesperada por algo novo
para usar numa cerimônia de entrega de prêmios em Hollywood,
pedi ao estilista Nino Cerruti uma
de suas criações emprestadas. (...)
O vestido me fez lembrar algo...")
dão ao leitor uma idéia do que ele
tem nas mãos. E, no entanto, para
além dos cosméticos, alguma coisa nessa história é de fato sensacional.
Sargent (1856-1925) nasceu em
Florença, filho de um casal de
americanos que passava a vida
viajando pela Europa, perseguindo um padrão social que não condizia com suas posses. No conto
"O Pupilo", de 1891, Henry James
narra a história de um menino
frágil e hiperdotado em situação
semelhante: apesar de não terem
dinheiro para nada, os pais vivem
como alta burguesia e contam
com o charme do filho para manter seu preceptor preso numa relação afetiva, não-remunerada.
Henry James e Sargent se conheceram em 1884, em Paris, e logo se tornaram amigos íntimos. O
escritor quarentão deve ter reconhecido no jovem pintor americano e expatriado alguma coisa
de si. Há quem veja nos melhores
retratos de Sargent uma perspicácia de observação análoga à análise psicológica que o autor de "O
Retrato de uma Senhora" faz de
seus personagens. Um ano depois
do encontro, o escritor conseguiu
convencer o artista, contrariado
com o escândalo provocado pelo
retrato de "Madame X", a se mudar para Londres.
A família de Sargent tinha se
instalado em Paris quando ele
ainda era jovem para que pudesse estudar pintura. Logo o rapaz
se revelou um talento promissor.
Seus interesses, porém, estavam
menos voltados a inovações estéticas do que a se afirmar como
um artista consagrado e bem remunerado. Sargent decide ser retratista. Faz os contatos certos,
frequenta a alta sociedade parisiense.
Em 1881, consegue pintar o retrato do célebre ginecologista e sedutor Samuel-Jean Pozzi, amante
de Sarah Bernhardt, entre outras
mulheres que o chamam de "doutor Amor". Pozzi é um personagem e tanto. Em 1886, quando tinha apenas 15 anos, o jovem
Proust foi convidado pelo ginecologista amigo da família a jantar
no Ritz pela primeira vez e acabou "retribuindo" o convite ao
transformá-lo num médico imbecil e mundano, o doutor Cottard,
em "Em Busca do Tempo Perdido". Sexagenário, o "doutor
Amor" participava de orgias organizadas por sociedades secretas. E morreu em 1918, assassinado por um cliente que o acusava
de tê-lo deixado impotente depois
de uma operação no pênis.
O retrato que Sargent pintou do
médico, vestido com um roupão
vermelho, como um príncipe renascentista, foi visto por Oscar
Wilde numa exposição em Londres e o teria inspirado a escrever
"O Retrato de Dorian Gray". Foi
também por intermédio de Pozzi
que Sargent conheceu Amélie
Gautreau, uma das amantes do
ginecologista, nascida em Nova
Orleans e casada com um rico advogado bretão. A jovem Madame
Gautreau era um dos expoentes
da nova burguesia parisiense. Cada um dos seus passos era calculado para fazê-la aparecer. O retrato que Sargent pintou dela, porém, foi um tiro pela culatra.
O quadro reunia de certa forma
dois arrivistas. Exposto no Salão
de 1884, prestigiosa exposição
anual marcada por seu academicismo, o retrato de "Madame X"
transformou a socialite em motivo de chacota. Tudo por causa da
alça caída, vista por muitos como
uma afronta imoral e um elemento calculista da parte do pintor.
Deborah Davis não tece maiores considerações estéticas sobre o
trabalho de Sargent. Está mais interessada no fenômeno social que
ele retrata: a frivolidade da alta
burguesia européia e americana
do final do século 19 (a descrição
que a autora faz, em três linhas,
da Comuna de Paris poderia ter
saído da boca de uma colunável
da Terceira República).
Consagrado dos dois lados do
Atlântico como um dos maiores
retratistas do seu tempo, Sargent
acabou sendo considerado um
pintor anacrônico e acadêmico
no seu hedonismo estetizante.
Andy Warhol admirava a qualidade da sua pintura. Há poucos
anos, uma megaexposição itinerante entre Londres, Washington
e Boston tentou resgatar o prestígio do pintor. Sinal de que, para o
bem ou para o mal, há mais em
comum entre o final do século 19 e
o final do século 20 do que se pode
imaginar.
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