|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Elogio das eleições
Em época de eleições, sempre
ouço comentários sarcásticos: votar é participar de um processo idiota, em que um monte de
sujeitos desinformados escolhem
administradores e representantes
segundo critérios que nada têm a
ver com as questões e os valores
em jogo.
Responder o quê? É um fato: em
sua maioria, os eleitores são desinformados. Eis um exemplo
americano (sem ufanismo: a situação no Brasil não deve ser melhor): o Program on International
Policy Attitudes (programa que
estuda as opiniões dos cidadãos
sobre política internacional), da
Universidade de Maryland, nos
EUA, quis saber o que pensam os
americanos em matéria de ajuda
a países estrangeiros. Resultados:
em 2002, a maioria dos americanos queria que os EUA gastassem
US$ 1 em ajuda a países estrangeiros a cada US$ 3 destinados à
defesa nacional. De fato, os EUA
gastam US$ 1 em ajuda internacional a cada US$ 19 investidos
na defesa.
Portanto você poderia imaginar
que os ditos americanos quisessem gastar menos em armamentos e mais em ajuda internacional. Nada disso: em sua maioria,
os ditos americanos pensavam
que os EUA investiam demais em
ajuda internacional. Como pode?
Simples. Eles não conheciam as
alocações orçamentárias: acreditavam que os EUA gastassem
24% de seu Orçamento em ajuda
a países estrangeiros (um disparate; na realidade, a ajuda internacional absorve 1% do Orçamento dos EUA).
O que aconteceria na hora de
esses cidadãos votarem? Aclamariam o candidato que prometesse
diminuir a ajuda a países estrangeiros. No entanto, se conhecessem o tamanho real dessa ajuda,
eles prefeririam aumentá-la.
Não me diga que esses sujeitos
seriam informados graças ao debate entre partidos e candidatos.
Sob a névoa das campanhas eleitorais, é provável que ninguém
aprenda coisa alguma. Você, eleitor paulistano médio, depois de
semanas de horário eleitoral, sabe mesmo quem começou as
obras daquela estação de metrô
que lhe interessa?
O eleitor desinformado, então,
escolhe baseando-se em quê?
Nosso interlocutor desabusado
dirá que o voto é efeito de marketing, de interesses privados imediatos e de simpatias irracionais.
Nada a ver com a idéia do bem
público. Ele concluirá: não seria
melhor desistir da democracia e
confiar o governo a quem sabe
das coisas? (Detalhe: quem pensa
assim, em geral, inclui-se na elite
dos que sabem das coisas.)
Sem chegar a tanto, é banal
considerar que o funcionamento
democrático seria "dos males o
menor". Entende-se por quê: nossa cultura valoriza a consciência
crítica dos indivíduos. As decisões
coletivas nos parecem fadadas ao
erro por serem paixões da massa
manipulada ou médias estatísticas, consensos numéricos sem argumentação e sem complexidade.
Ora, acaba de sair um livro divertido, perfeito para uma época
de eleições, "The Wisdom of
Crowds" (a sabedoria das multidões), de James Surowiecki. O livro é uma mina de exemplos, nos
quais aparece que as coletividades chegam a decisões parecidas
com as dos mais sábios. As experiências relatadas funcionam
mais ou menos assim: reúne-se
um grupo de sujeitos com grandes
competências específicas para a
solução de um problema. Para resolver o mesmo problema, reúne-se outro grupo de sujeitos com
competências menores e muito
menos específicas. Comparam-se
os resultados. Misteriosamente,
os resultados do segundo grupo
(menos homogêneo e menos competente) são parecidos com os do
primeiro (ou, então, são melhores). Não me pergunte por quê; o
fato é que a diversidade dos sujeitos que compõem o segundo grupo parece valer tanto quanto a
competência dos especialistas, se
não mais. Os chutes e os palpites
dos desinformados competem
com as decisões argumentadas
dos "experts".
A misteriosa sabedoria das
multidões não é o único argumento a favor da prática democrática. Há outro, talvez mais importante. Para introduzi-lo, uma
anedota. Zombei de um amigo
inglês, pelo fato de a Grã-Bretanha ser "ainda" uma monarquia.
Ele me respondeu que eu não entendia a beleza do sistema: a cada
semana, o primeiro-ministro, homem inteligente e escolhido pelo
voto popular, deve prestar conta a
um rei ou a uma rainha ignaros,
eventualmente arrogantes e escolhidos pela roleta genética. A humildade necessária para essa
prestação de contas seria, segundo meu amigo, a suprema virtude
democrática inglesa.
Adaptemos essa anedota ao
funcionamento das eleições. Os
que sabem das coisas (nós, não é?)
devem tolerar que a escolha de representantes e governos esteja nas
mãos de uma massa, da qual eles
fazem parte, mas que lhes parece
ser composta, em sua maioria, de
sujeitos que decidem Deus sabe
segundo qual critério.
O exercício democrático, nota
Surowiecki em sua conclusão, é a
"experiência de não ter tudo o
que a gente quer. É a experiência
de ver nossos opositores ganharem (...) e de aceitar essa situação". Acrescento que é também a
experiência de ser apenas um entre outros.
Nisso, as eleições são terapêuticas, pois não há cura para a dor
de viver que não peça justamente
que desistamos de considerar que
somos extraordinários, onipotentes e únicos.
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Livro: "Aurélio" ganha nova versão sem aumentar número de verbetes Próximo Texto: Panorâmica - Personalidade: Tom Capone estava bêbado, diz laudo Índice
|