São Paulo, sábado, 30 de setembro de 2006

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Entre o mar e o cimento

Recém-lançado, "Raro Mar (2002-2006)" sucede a reunião revista dos 13 títulos de poesia de Armando Freitas

O CARIOCA ARMANDO Freitas Filho já traduziu sua poética na figura de um jogo de armar que não acaba, por ele ensaiado "num lugar sem mãos", em que as peças quase se encaixam, mas há sempre algo de excesso ou de falta. A imagem é feliz por contemplar o que de construção medida, expansão violenta e mobilidade irrequieta assumem as tensas armações provisórias, contemporâneas, que o poeta propõe para seu "microcosmo o da relação entre dois signos (poesia/vida) interligados", na fórmula de Sebastião Uchoa Leite.
Recém-lançado, "Raro Mar (2002-2006)" sucede a reunião revista de seus 13 títulos de poesia em "Máquina de Escrever" (Nova Fronteira, 2003), livro que abarcava um extenso percurso compreendido entre "Palavra" (1963), sua estréia, e, o até então inédito, "Numeral/Nominal". Neste volume, o aspecto movediço que a herança modernista assume em sua obra (Cabral reverenciado a contrapelo, Drummond retorcido, desdobrado) deixa-se ler didaticamente em suas inflexões e guinadas.
Se, num primeiro momento, a aproximação da forma experimental e das artes plásticas conduziu-o para uma poesia gráfica, espiralada, quase abstrata em sua música paronomástica, a eclosão do sujo e inacabado da vida (Armando, leitor de Gullar) desloca a linguagem rumo ao inacabado da prosa do mundo, repleto de sobras. Do encontro surge o poema como costura bruta "de pontos tortos", cicatriz prévia.
A urgência erótica do corpo, o rolo compressor dos dias, "estatísticos" e "adversos", o mundo urbano degradado dos nomes imolados em números, sob aspecto concreto e brasileiro do Rio de Janeiro, encontram correspondência nas imagens recorrentes do risco, do salto e do disparo ("Estado ainda não nomeável, alma vazia/ da culatra ao cano, da arma/ que não decidiu o destino do tiro"), vazadas num verso tateante, cheio de arestas, que "feito de ar e músculo/ tenta passar, na folga dos motores/ o que foi escrito, com o que se leu/ e com o que é ilegível, que ainda/ está lá, no lado oculto da lua".
Rareia o mar, faz-se escasso o riso: a ironia de outros tempos, trocadilhesca, onívora e alusiva ("Fazer um poema / à clef,/ Paul?") cede espaço ao aguilhão discreto de "Perfil", em que se demonstra que o corte de Machado, ao contrário do que sugere seu nome, não é o do carrasco, mas o da "pena afiada", oferecida "de surpresa/ no fio da folha papel fino".
Este mar do título, figuração possível do sublime, vizinho, mas remoto, inaudível "desde o centro de cimento da cidade", em meio a um cotidiano em que "cada dia é uma bala de roleta-russa" ameaça secar e expor "o rochedo absoluto", em que a vida é "desmanche de crianças, jardim travado, não verdeja, deu pau" ("2004"). Encerra "Raro mar" nova seção de "Numeral", poemas sem título, tentativas anônimas de nomear, retomadas de onde o livro anterior as abandonou. Entre a série e o impasse, o poeta segue apostando em seus jogos de armar.


RARO MAR (2002-2006)     
Autor: Armando Freitas Filho
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28 (94 págs.)


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