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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
Entre o mar e o cimento
Recém-lançado, "Raro Mar (2002-2006)" sucede a reunião revista dos 13 títulos de poesia de Armando Freitas
O CARIOCA ARMANDO Freitas
Filho já traduziu sua poética
na figura de um jogo de armar que não acaba, por ele ensaiado
"num lugar sem mãos", em que as
peças quase se encaixam, mas há
sempre algo de excesso ou de falta. A
imagem é feliz por contemplar o que
de construção medida, expansão
violenta e mobilidade irrequieta assumem as tensas armações provisórias, contemporâneas, que o poeta
propõe para seu "microcosmo o da
relação entre dois signos (poesia/vida) interligados", na fórmula de Sebastião Uchoa Leite.
Recém-lançado, "Raro Mar
(2002-2006)" sucede a reunião revista de seus 13 títulos de poesia em
"Máquina de Escrever" (Nova Fronteira, 2003), livro que abarcava um
extenso percurso compreendido entre "Palavra" (1963), sua estréia, e, o
até então inédito, "Numeral/Nominal". Neste volume, o aspecto movediço que a herança modernista assume em sua obra (Cabral reverenciado a contrapelo, Drummond retorcido, desdobrado) deixa-se ler didaticamente em suas inflexões e guinadas.
Se, num primeiro momento, a
aproximação da forma experimental e das artes plásticas conduziu-o
para uma poesia gráfica, espiralada,
quase abstrata em sua música paronomástica, a eclosão do sujo e inacabado da vida (Armando, leitor de
Gullar) desloca a linguagem rumo
ao inacabado da prosa do mundo, repleto de sobras. Do encontro surge o
poema como costura bruta "de pontos tortos", cicatriz prévia.
A urgência erótica do corpo, o rolo
compressor dos dias, "estatísticos" e
"adversos", o mundo urbano degradado dos nomes imolados em números, sob aspecto concreto e brasileiro do Rio de Janeiro, encontram
correspondência nas imagens recorrentes do risco, do salto e do disparo ("Estado ainda não nomeável,
alma vazia/ da culatra ao cano, da arma/ que não decidiu o destino do tiro"), vazadas num verso tateante,
cheio de arestas, que "feito de ar e
músculo/ tenta passar, na folga dos
motores/ o que foi escrito, com o
que se leu/ e com o que é ilegível, que
ainda/ está lá, no lado oculto da lua".
Rareia o mar, faz-se escasso o riso:
a ironia de outros tempos, trocadilhesca, onívora e alusiva ("Fazer um
poema / à clef,/ Paul?") cede espaço
ao aguilhão discreto de "Perfil", em
que se demonstra que o corte de Machado, ao contrário do que sugere
seu nome, não é o do carrasco, mas o
da "pena afiada", oferecida "de surpresa/ no fio da folha papel fino".
Este mar do título, figuração possível do sublime, vizinho, mas remoto,
inaudível "desde o centro de cimento da cidade", em meio a um cotidiano em que "cada dia é uma bala de
roleta-russa" ameaça secar e expor
"o rochedo absoluto", em que a vida
é "desmanche de crianças, jardim
travado, não verdeja, deu pau"
("2004"). Encerra "Raro mar" nova
seção de "Numeral", poemas sem título, tentativas anônimas de nomear, retomadas de onde o livro anterior as abandonou. Entre a série e
o impasse, o poeta segue apostando
em seus jogos de armar.
RARO MAR (2002-2006)
Autor: Armando Freitas Filho
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28 (94 págs.)
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