São Paulo, sábado, 30 de setembro de 2006

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Crítica/história

Livros revelam aspectos pouco conhecidos da escravidão

ESPECIAL PARA A FOLHA

A história da escravidão registra vários casos de captura de navios negreiros pela Marinha britânica, mas dá pouca atenção ao que acontecia depois que a nova tripulação dominava o tumbeiro.
Essa lacuna é agora preenchida com a publicação de "Cinqüenta Dias a Bordo de um Navio Negreiro", de Pascoe Grenfell Hill, dentro da coleção "Baú de Histórias", da editora José Olympio.
Hill (1804-1882) é o reverendo inglês que se encontrava na embarcação britânica que, na véspera da Semana Santa de 1843, interceptou o "Progresso", navio negreiro brasileiro que se dirigia ao Rio de Janeiro com 447 escravos (entre os quais 45 mulheres e 213 crianças). Seu relato é sobre o que ocorre depois que o navio muda a rota e veleja até a Cidade do Cabo, na África do Sul, onde os sobreviventes são finalmente libertados (ainda que para viver em semi-escravidão).
A explosão de alegria -em que uma estridente zoeira se misturou ao som dos grilhões arrebentando- durou apenas um dia. Uma tempestade fez com que a tripulação evacuasse o tombadilho e trancasse os negros no minúsculo porão. O resultado foram "54 corpos esmagados e lacerados". Ao fim dos 50 dias de viagem, 177 negros haviam morrido.
Os ingleses passaram de heróis a vilões. É o próprio Hill quem conclui que a captura de um navio é mais desastrosa para o escravo do que para o traficante. O autor supõe que, para os escravos, a calamidade nas mãos de seus compradores teria sido menor do que foi sob a proteção de seus libertadores, que involuntariamente agravaram suas misérias. Afinal, os traficantes são mais qualificados para a tarefa e "têm o maior interesse que homens possam ter na preservação de uma carga extremamente valiosa".
Não é objetivo do autor analisar o tráfico. É preciso, portanto, ler seu testemunho sem perder de vista o papel que a Inglaterra (movida por interesses econômicos, certamente) teve para a proibição do tráfico, sete anos mais tarde.

Muçulmanos
Complementar ao livro de Hill é "Entrevistas com Escravos Africanos na Bahia Oitocentista", de Francis de Castelnau (1812-1880), cônsul francês no Brasil em 1848. O trabalho etnográfico de Castelnau permite que se conheçam de perto negros que, ao contrário dos que estavam a bordo do "Progresso", cruzaram o Atlântico.
Embora o livro seja um documento sem apelo ao leigo, os perfis são interessantes por enfocar negros muçulmanos que, alfabetizados em árabe, pertenciam ao grupo que, em 1835, protagonizara o levante dos malês, o movimento étnico-classista que colocou em xeque a escravidão baiana em nome do islamismo. (OP)

CINQÜENTA DIAS A BORDO DE UM NAVIO NEGREIRO    
Autor: Pascoe Grenfell Hill
Tradução: Marisa Murray
Editora: José Olympio
Quanto: R$ 23 (124 págs.)

ENTREVISTAS COM ESCRAVOS AFRICANOS NA BAHIA OITOCENTISTA   
Autor: Francis de Castelnau
Tradução: Marisa Murray
Editora: José Olympio
Quanto: R$ 19 (84 págs.)


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