São Paulo, quarta, 30 de setembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MÚSICA ERUDITA
Academy funde o clássico e o romântico

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Onde acaba Mozart e começa Schubert? A pergunta estava implícita no programa de um bom concerto da Academy of Ancient Music, segunda, no Cultura Artística. O clássico e o romântico se cruzam quando interpretados por uma orquestra de câmara como essa.
Transparente, leve, rápida, fazendo valer ao máximo o som dos instrumentos originais, a Academy, regida por Christopher Hogwood, é ainda um dos melhores conjuntos de música antiga em atividade, 25 anos depois de sua fundação. Não é uma orquestra dos sonhos, não faz ninguém levitar. Mas toca tudo com inteligência e brio, e pelo menos em alguns momentos com evidente prazer.
Onde acaba Schubert e começa Mozart não seria uma pergunta legítima, porque a influência, neste caso, não chega a ter duas mãos. Nem mesmo Schubert consegue se fazer ouvir dentro de Mozart. Na "Sinfonia nš 33", por exemplo, de 1779, as abstrações do classicismo guardam um peso de melancolia que não tem nada da miséria de inverno de Schubert. A Academy tocou a Sinfonia com mais abstração do que melancolia - uma característica desta orquestra, que às vezes chega a cansar de tanta leveza.
A estrela da noite foi a soprano escocesa Lorna Anderson, que cantou o motete "Exsultate, Jubilate", de Mozart, na primeira parte, e o pouco conhecido e lindo "Salve Regina", de Schubert, na segunda. Musicalmente discreta, sem nenhuma timidez, Anderson é refinada, tranquila, carinhosa com cada nota, com empostação natural. Tem um quê de distância, ou reserva, mas canta com tanta fluência e generosidade musical que fica fácil desculpar a falta de arroubo.
O melhor ficou mesmo para o fim, com a "Sinfonia nš 5" de Schubert. Há um vídeo caseiro do pianista Glenn Gould tocando o início da sinfonia. A alegria de Gould é inesquecível, cantarolando o primeiro tema junto com o piano, fazendo uma música tão cheia de bons sentimentos que chega a dar vontade de chorar. É um Schubert mozartiano, mesmo para Gould, que não gostava de Mozart.
Foi um Schubert mozartiano também que Hogwood regeu, com intenção de fazer se falarem as duas sinfonias do programa. As duas são, entre outras coisas, exercícios de composição com o semitom - uma das descobertas "românticas" de Mozart, assim como as alterações de modo maior para menor e vice-versa, que marcam o minueto da "Sinfonia nš 33" e a sinfonia de Schubert inteira.
Mozart morreu com 35 anos e só se pode especular sobre que música ele não teria chegado a escrever com 70. Com 60, em 1816, poderia ter escrito algo como a sinfonia de Schubert. Tocada assim, com apenas seis primeiros violinos, flauta de madeira, trompas naturais, violoncelo sem espigão, a música soa mais aberta, mais leve, menos século 19 do que o habitual. Falta um pouco mais de sombra, de peso, um pouco mais de século 19, mas reclamar isso da Academy não seria justo: é quase o contrário do que eles querem fazer.
Boa música tão bem tocada é sempre um prazer. Não foi um concerto arrebatador, mas foi muito bonito e deixou a gente mais leve e menos século 19 do que o habitual. E a essa altura quem não precisa perder um pouco de peso?



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.