São Paulo, segunda-feira, 30 de outubro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARIANO SUASSUNA

Em memória de um Poeta popular


ALMANAQUE ARMORIAL
Grande Logogrifo Brasileiro da Arte, do Real e da Beleza, contendo idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia e Licenciado em Artes Ariano Suassuna


RODOLFO COELHO CAVALCANTE E EU

Um dos títulos de glória que tenho neste mundo é ser amigo da grande maioria dos Cantadores e Folhetistas ligados ao Romanceiro Popular do Nordeste. Na década de 70 esses poetas andaram fundando várias associações-de-classe, umas aqui, outras ali.
Houve uma com o belo nome de Associação Nacional de Trovadores e Violeiros. Em Juazeiro do Padre Cícero, outra, da qual fui feito Sócio-de-Honra pelo Cantador (e meu amigo) Pedro Bandeira.
É em tal qualidade que venho aqui hoje recordar: em 1972, o famoso Poeta popular alagoano Rodolfo Coelho Cavalcante, hoje falecido, organizou um Torneio de décimas intitulado Concurso Nacional Aniversário de Trovador.
Rodolfo Coelho Cavalcante era um desses paupérrimos Fidalgos esfarrapados e famintos do Nordeste, dos quais vivo falando, num tom nem sempre bem compreendido.
Era filho de Artur de Holanda Cavalcante e Maria Coelho. Nasceu a 12 de Março de 1919, em Rio Largo, Alagoas. Aos 13 anos de idade deixou a casa paterna e passou a percorrer o Sertão da maioria dos Estados nordestinos.
Foi, sucessivamente, "propagandista, palhaço-de-circo e camelô". Todas estas são "honrosíssimas profissões de Fidalgos ociosos e arruinados", como diria Dom Pedro Dinis Quaderna, O Decifrador, personagem principal do meu romance d'A Pedra do Reino.
A partir de 1945, porém, Rodolfo Coelho Cavalcante fixou-se na Bahia, onde morou até a data de sua morte, passando a viver somente como Folhetista e Violeiro.
Um de seus mais conhecidos Folhetos é A Chegada de Getúlio Vargas no Céu e seu Julgamento. O Folheto tem características curiosas. Comparando-o com outros como A Lamentável Morte do Presidente Getúlio Vargas (que é mais circunstancial, ou de-época), nota-se que a obra de Rodolfo Coelho Cavalcante é do ciclo do maravilhoso, pois já apresenta o Presidente Vargas como Personagem mitificado. Eis algumas de suas estrofes:
"Estava Jesus na corte do celeste Paraíso, quando o Anjo São Miguel deu-lhe o doloroso aviso: - Matou-se Getúlio Vargas! Das vossas ordens preciso.
"- Eu não mandei-te, Miguel, livrá-lo da tirania do Deputado Lacerda, de Gregório & Companhia? Por que o deixaste sozinho, sofrendo tal agonia? De qualquer maneira eu quero Getúlio no Paraíso, pois um sério julgamento fazer com ele preciso. Corra, vá ligeiro à Terra, com São Jorge e São Narciso.
"Osvaldo Aranha gritava: - Getúlio Vargas morreu! Mataram meu grande amigo, que pelo Povo sofreu Lutero também chorava, São Miguel se entristeceu.
"São Miguel chamou Getúlio, que estava muito aflito. Como se estivesse em sonho, deu ele um tristonho grito, e, ao ver os Mensageiros, ajoelhou-se contrito.
"Estava Jesus no Trono, já pronto para julgá-lo. São Libório, o promotor, começou a acusá-lo, enquanto a Virgem Santíssima chegou para advogá-lo.
"Disse Libório: - Senhor, Getúlio zombou demais! No tempo da Ditadura, encarcerou Generais! Prendeu gente e matou gente, como se fosse animais!
"Nossa Senhora sorriu e disse: - Não acredito! Quem governa leva a fama de tudo o que é maldito! O que fizeram em seu nome, jamais foi por ele escrito!
"Assim, Getúlio foi salvo do seu gesto delirante, e breve virá à terra, como um Chefe triunfante, para ajudar o poeta Rodolfo C. Cavalcante."
Vê-se, por estas estrofes, como, no Folheto, estão presentes alguns dos elementos mais ligados ao "inconsciente coletivo" do Povo brasileiro. Entre eles, o Sebastianismo, cujo espírito, aqui, durante muito tempo, cercou o Presidente Vargas, o "Pai dos pobres" que ressuscitaria como "Chefe triunfante" para voltar a protegê-los.
Como em dois outros Folhetos famosos O Castigo da Soberba, de Leandro Gomes de Barros, e A Peleja da Alma, de Silvino Pirauá, -é relevante, no de Rodolfo Coelho Cavalcante, o papel da Virgem Maria, que, na linha dos autos e mistérios, aparece como "advogada nossa", título que lhe é atribuído pela oração da Salve-Rainha.
Outro pormenor curioso do folheto é que, não querendo introduzir no céu a figura do Demônio, Rodolfo Coelho Cavalcante apresenta como promotor um Santo de nome para ele estranho, Libório, e de cujas acusações A Misericordiosa defende o Presidente Vargas.
Sendo eu autor de uma Peça-mariana, o Auto da Compadecida, e tendo já confessado várias vezes que tenho dentro de mim, entre outros personagens, um Padre indigno, um Cangaceiro manso, um Professor em retiro, um Palhaço sem picadeiro e um Cantador frustrado, honra-me demais verificar que carrego comigo todos estes parentescos e semelhanças com o "propagandista, Palhaço-de-circo, camelô" e sobretudo grande Poeta popular que foi Rodolfo Coelho Cavalcante.


Texto Anterior: Judeus protestam contra música de Wagner
Próximo Texto: Panorâmica: Brasileiro recebe prêmio na Espanha
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.