São Paulo, quarta-feira, 30 de outubro de 2002

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MARCELO COELHO

A vitória de Lula e uma nova onda cultural

Comecei a sentir sinais de mudança em nosso país há coisa de uns 20 dias, quando fui comprar pó de café numa padaria -devo dizer que não das mais elegantes- aqui do bairro, e ouvi duas balconistas combinando uma ida ao cinema. Queriam ver "Cidade de Deus"; tinham ouvido falar que era ótimo.
Avesso a TV, música popular e futebol, vivo num mundo cultural com pouquíssimos pontos de contato com o da maioria da população. No táxi ou no barbeiro, minha única expectativa sempre foi a de não ouvir extravagâncias, ilogicidades e malufismos além do que posso suportar.
Minha estratégia sempre foi a de responder com monossílabos aos discursos em favor da pena de morte, do Ratinho ou dos militares. Em São Paulo, pelo menos, o conservadorismo do eleitorado sempre foi enorme. Levei um susto quando o barbeiro disse que ia votar em Mercadante, e não em Romeu Tuma.
Mas voltando a "Cidade de Deus". Talvez o sucesso do filme de Fernando Meirelles esteja marcando uma nova "onda cultural". Não digo "onda vermelha", porque o filme não se propõe a ser obra de militância partidária. Mas essa "onda cultural" de certo modo prenunciou a ascensão de Lula à Presidência.
Claro que esses prenúncios só se revelam "prenúncios" depois de tudo já ter acontecido. Eu, que duvidava da vitória do PT até as últimas pesquisas de opinião, dificilmente seria capaz de ligar os fatos, atribuí-los a um mesmo fenômeno.
Dos Racionais MCs ao romance de Paulo Lins, do livro "Capão Pecado", de Ferréz, ao espetáculo de Ivaldo Bertazzo com os adolescentes da favela da Maré, de Fernando Bonassi aos autores da coletânea "Literatura Marginal" editada pela revista "Caros Amigos", a realidade da periferia, dos excluídos, do "andar de baixo", como diz Elio Gaspari, afirma-se hoje, no plano cultural, com o mesmo destaque e ar de novidade que cercavam o sindicalismo do ABC e o PT no finalzinho da década de 70.
É verdade que o rap dos "Racionais" é feito por moradores da própria periferia, ao passo que "Cidade de Deus", por exemplo, é um filme feito por um publicitário bem-sucedido profissionalmente. Mas não é só no assunto, no tema, que essas diferentes manifestações culturais convergem.
Não se trata de engajamento político rigoroso, nem mesmo, creio, de pura denúncia social. Pode-se fazer denúncia social mostrando a população como vítima, tratando-a "na terceira pessoa": olha, eles vivem assim etc. Um teatro político de excelente qualidade, como o da Companhia do Latão, é muito mais "de esquerda" do que um livro como "Estação Carandiru", de Dráuzio Varella.
Mas, ainda que "Estação Carandiru" tenha sido escrito por um médico, e não por um detento, os personagens ali retratados falam com sua própria voz, ou, pelo menos, estão a ponto de apropriar-se da narração. É também o que vemos em "Cidade de Deus". O filme é contado "de dentro para fora", por assim dizer. O foco da obra está na "primeira pessoa"; e não apenas porque Buscapé, o narrador, toma a palavra para explicar os fatos ao espectador.
Valeria comparar "Cidade de Deus", de 2002, com o filme que marca o início da retomada do cinema nacional. "Carlota Joaquina", de Carla Camurati, é de 1994. Foi o ano em que Fernando Henrique se elegeu presidente da República.
Nada mais sintomático, a meu ver, do que o fato de "Carlota Joaquina" iniciar-se numa paisagem escocesa, sendo narrado em inglês. O olhar estrangeiro é invocado, "in extremis", para traçar o quadro de um país fadado a não dar certo desde o início.
Daqui de dentro, de nossa herança católica e portuguesa, nada havia a esperar. O julgamento não é incorreto em tese, mas surgia bastante desfocado, à medida que o escárnio às "nossas elites atrasadas" se afirmava num período de deslumbramento com o investimento externo e a globalização.
As esperanças cardosianas na modernização "exógena", na importação de tecnologia, na farra do real supervalorizado já iam meio mal das pernas, acho, quando "Central do Brasil", filme de Walter Salles Jr., encenou com muita sensibilidade e não muito realismo um daqueles movimentos de procura do "verdadeiro Brasil", de "caminho para o Oeste" que são tentados periodicamente no país, como uma espécie de escapada para dentro.
"Carlota Joaquina" fazia o movimento da Europa para o Brasil, encontrando aqui absurdo, desgosto e fracasso; Marieta Severo fazia o papel da mãe desbocada que renega o filho, entregando-o à própria sorte. "Central do Brasil" traçava o percurso do litoral para o interior, encontrando ali uma utopia algo açucarada do associativismo econômico, do pequeno artesanato, de uma fraternidade que servia como refúgio para o pequeno personagem em busca do pai.
Com suas crianças que já são adultas, em "Cidade de Deus" a realidade da periferia não é tratada como o ponto de chegada de algum percurso narrativo. A periferia vive isolada, autônoma, reduzindo-se ao mínimo (vendedores de armas, consumidores de drogas, polícia, repórteres) seus contatos com o mundo exterior. Observe-se, entre parênteses, o contraste entre esse filme e o vaivém espacial de "O Invasor", de Beto Brant, no qual a periferia é fonte de ameaça, contaminação e fascínio.
A periferia, em "Cidade de Deus", não é "objeto" de um olhar externo, seja atemorizado, esperançoso ou sarcástico. Exagerando um pouco, diríamos que nesse filme a periferia é "sujeito", e não "objeto", de um olhar. Talvez seja isso o que está em pauta no momento.


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