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MARCELO COELHO
A vitória de Lula e uma nova onda cultural
Comecei a sentir sinais de
mudança em nosso país há
coisa de uns 20 dias, quando fui
comprar pó de café numa padaria -devo dizer que não das
mais elegantes- aqui do bairro,
e ouvi duas balconistas combinando uma ida ao cinema. Queriam ver "Cidade de Deus"; tinham ouvido falar que era ótimo.
Avesso a TV, música popular e
futebol, vivo num mundo cultural
com pouquíssimos pontos de contato com o da maioria da população. No táxi ou no barbeiro, minha única expectativa sempre foi
a de não ouvir extravagâncias,
ilogicidades e malufismos além
do que posso suportar.
Minha estratégia sempre foi a
de responder com monossílabos
aos discursos em favor da pena de
morte, do Ratinho ou dos militares. Em São Paulo, pelo menos, o
conservadorismo do eleitorado
sempre foi enorme. Levei um susto quando o barbeiro disse que ia
votar em Mercadante, e não em
Romeu Tuma.
Mas voltando a "Cidade de
Deus". Talvez o sucesso do filme
de Fernando Meirelles esteja
marcando uma nova "onda cultural". Não digo "onda vermelha", porque o filme não se propõe
a ser obra de militância partidária. Mas essa "onda cultural" de
certo modo prenunciou a ascensão de Lula à Presidência.
Claro que esses prenúncios só se
revelam "prenúncios" depois de
tudo já ter acontecido. Eu, que
duvidava da vitória do PT até as
últimas pesquisas de opinião, dificilmente seria capaz de ligar os
fatos, atribuí-los a um mesmo fenômeno.
Dos Racionais MCs ao romance
de Paulo Lins, do livro "Capão
Pecado", de Ferréz, ao espetáculo
de Ivaldo Bertazzo com os adolescentes da favela da Maré, de Fernando Bonassi aos autores da coletânea "Literatura Marginal"
editada pela revista "Caros Amigos", a realidade da periferia, dos
excluídos, do "andar de baixo",
como diz Elio Gaspari, afirma-se
hoje, no plano cultural, com o
mesmo destaque e ar de novidade
que cercavam o sindicalismo do
ABC e o PT no finalzinho da década de 70.
É verdade que o rap dos "Racionais" é feito por moradores da
própria periferia, ao passo que
"Cidade de Deus", por exemplo, é
um filme feito por um publicitário bem-sucedido profissionalmente. Mas não é só no assunto,
no tema, que essas diferentes manifestações culturais convergem.
Não se trata de engajamento
político rigoroso, nem mesmo,
creio, de pura denúncia social.
Pode-se fazer denúncia social
mostrando a população como vítima, tratando-a "na terceira pessoa": olha, eles vivem assim etc.
Um teatro político de excelente
qualidade, como o da Companhia do Latão, é muito mais "de
esquerda" do que um livro como
"Estação Carandiru", de Dráuzio
Varella.
Mas, ainda que "Estação Carandiru" tenha sido escrito por
um médico, e não por um detento, os personagens ali retratados
falam com sua própria voz, ou,
pelo menos, estão a ponto de
apropriar-se da narração. É também o que vemos em "Cidade de
Deus". O filme é contado "de dentro para fora", por assim dizer. O
foco da obra está na "primeira
pessoa"; e não apenas porque
Buscapé, o narrador, toma a palavra para explicar os fatos ao espectador.
Valeria comparar "Cidade de
Deus", de 2002, com o filme que
marca o início da retomada do cinema nacional. "Carlota Joaquina", de Carla Camurati, é de
1994. Foi o ano em que Fernando
Henrique se elegeu presidente da
República.
Nada mais sintomático, a meu
ver, do que o fato de "Carlota Joaquina" iniciar-se numa paisagem
escocesa, sendo narrado em inglês. O olhar estrangeiro é invocado, "in extremis", para traçar o
quadro de um país fadado a não
dar certo desde o início.
Daqui de dentro, de nossa herança católica e portuguesa, nada
havia a esperar. O julgamento
não é incorreto em tese, mas surgia bastante desfocado, à medida
que o escárnio às "nossas elites
atrasadas" se afirmava num período de deslumbramento com o
investimento externo e a globalização.
As esperanças cardosianas na
modernização "exógena", na importação de tecnologia, na farra
do real supervalorizado já iam
meio mal das pernas, acho, quando "Central do Brasil", filme de
Walter Salles Jr., encenou com
muita sensibilidade e não muito
realismo um daqueles movimentos de procura do "verdadeiro
Brasil", de "caminho para o Oeste" que são tentados periodicamente no país, como uma espécie
de escapada para dentro.
"Carlota Joaquina" fazia o movimento da Europa para o Brasil,
encontrando aqui absurdo, desgosto e fracasso; Marieta Severo
fazia o papel da mãe desbocada
que renega o filho, entregando-o
à própria sorte. "Central do Brasil" traçava o percurso do litoral
para o interior, encontrando ali
uma utopia algo açucarada do
associativismo econômico, do pequeno artesanato, de uma fraternidade que servia como refúgio
para o pequeno personagem em
busca do pai.
Com suas crianças que já são
adultas, em "Cidade de Deus" a
realidade da periferia não é tratada como o ponto de chegada de
algum percurso narrativo. A periferia vive isolada, autônoma, reduzindo-se ao mínimo (vendedores de armas, consumidores de
drogas, polícia, repórteres) seus
contatos com o mundo exterior.
Observe-se, entre parênteses, o
contraste entre esse filme e o vaivém espacial de "O Invasor", de
Beto Brant, no qual a periferia é
fonte de ameaça, contaminação e
fascínio.
A periferia, em "Cidade de
Deus", não é "objeto" de um olhar
externo, seja atemorizado, esperançoso ou sarcástico. Exagerando um pouco, diríamos que nesse
filme a periferia é "sujeito", e não
"objeto", de um olhar. Talvez seja
isso o que está em pauta no momento.
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