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São Paulo, quinta-feira, 30 de outubro de 2003

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MÚSICA ERUDITA

Morena histérica manda pedir a cabeça do profeta enjaulado

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

A cabeça era boa. Trazida na baixela de prata, de olhos fechados e cabelos escorridos, encarnava o fetiche supremo da musa da histeria. Já o beijo não foi tão sexy assim. Entre a potência dos símbolos -redobrada no erotismo da música de Richard Strauss (1864-1949)- e uma relativa impotência do drama -na adaptação operística da peça de Oscar Wilde (1854-1900)-, esta nova montagem de "Salomé" se esforça para encontrar seu tom.
Estréia tem direito a desconto. Seria injusto reclamar do desajuste de tempos que comprometeu a última cena, sexta-feira no Municipal, com os panos vermelhos cobrindo o mundo de horror enquanto a princesa é esmagada pelos soldados. Ou dos trombones em crise justamente quando o profeta grita para a tentadora morena: "Tu estás amaldiçoada!".
O profeta está dentro de uma jaula, um globo da morte que é a grande invenção da diretora Ana Carolina. Conhecida como a cineasta de "Amélia" , entre outros filmes, ela tocava no pioneiro conjunto Musikantiga. Com um currículo desses, era de esperar a Salomé das Salomés -provavelmente incapaz de encarnar fora da imaginação.
Além de altas, magras e sensuais, as cantoras líricas agora também são etnicamente corretas, sem ironia. O mínimo que se pode dizer da soprano inglesa Morenike Fadayomi é que é uma morena capaz de atormentar um santo. Mas sua anunciada sensualidade não chega a explodir nem vocal nem dramaticamente. Canta e dança com fluência, mais do que com liberdade.
Entende-se a opção de Ana Carolina: contra as falsidades, a estilização. Uma espécie de homeopatia, que se ajusta bem ao modernismo kitsch de Strauss.
No caso do tenor Wolfgang Schmidt (Herodes) e da mezzo Céline Imbert (Herodíade), isso funciona, tanto mais que os dois cantam tão bem. Quase imóvel, dentro ou fora do globo, o barítono Donnie Ray Albert também é um centro de energia. Mas, para o conjunto semi-estático funcionar, não seria preciso uma Salomé metralhadora-sexual-giratória?
"A lua parece uma mulher alucinada à procura de seus amantes", diz o rei Herodes, chegando à aridez das dunas do cenário. Será? Estava tão calma no céu. Já a Sinfônica Municipal se equilibra na fortíssima onda: cem minutos de alucinação, que o maestro Ira Levin dirige sem correr riscos.
Salomé sem riscos é pouco? Pode ser, mas a ópera é uma enormidade, o esforço investido foi tremendo, e assistir a essa obra-prima ao vivo é um privilégio maior do que qualquer ressalva.


Salomé   
Onde: Teatro Municipal (pça. Ramos de Azevedo, s/nš, SP, tel. 0/xx/11/222-8698)
Quando: hoje, às 20h30; sáb., às 17h
Quanto: de R$ 15 a R$ 100



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