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Jardim das delícias
Mustafa Ozer/France Presse
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Mulher muçulmana passa diante de loja de lingeries em Istambul, na Turquia, país que negocia entrada na União Européia |
Muçulmana, autora do romance altamente erótico "Amêndoa", fala sobre os tabus do mundo árabe
LUCIANA COELHO
DE NOVA YORK
Um ato de contestação e de júbilo. É assim que Nedjma resume
seu "Amêndoa" (Objetiva, R$
33,90, 208 págs.), um romance
erótico de alta voltagem que talvez seja o primeiro vindo de uma
mulher muçulmana contemporânea. Uma provocação, necessária
para resgatar algo que foi confiscado das mulheres árabes.
Dona de um texto delicado, mas
nada sutil, Nedjma nos apresenta
Badra, uma mulher de cerca de 50
anos do norte da África forçada a
se casar muito jovem com um homem a quem não ama, mas nem
por isso conformada com uma vida amorosa e sexual estática. E pela voz da personagem dá vazão a
uma enxurrada de paixões e angústias que nem sempre o véu e o
silêncio imposto a tantas consegue conter.
"Amêndoa" foi lançado em 13
países, nenhum deles muçulmano. "Se os muçulmanos não lêem
Freud, Kafka, Sade, Faulkner, Irving, Cioran e outros tantos, por
que você iria querer que lessem a
mim?", diz a autora.
Nedjma assina sob pseudônimo, não divulga fotos e não revela
onde vive -ela foi criada no Marrocos. Mas diz não sofrer pressão
por conta da obra, que resgata
uma antiga tradição erótica da literatura árabe interrompida por
tabus criados mais recentemente.
"O mundo árabe vive de uma
subcultura populista, subordinada aos poderes políticos e religiosos", afirma.
"Todos sabem que o mundo
árabe é vítima de três tabus: política, religião e sexo. Uma tripla couraça de chumbo que consome toda a energia vital, toda a verve e
toda a audácia da vida intelectual
de Casablanca até Meca."
Com "Amêndoa", Nedjma ajuda a puir essa couraça. A seguir,
trechos da entrevista que ela concedeu, por e-mail, à Folha.
Folha - A sra. corou na primeira
vez que escreveu sobre sexo. Ainda
cora ou algo mudou?
Nedjma - Ainda coro. Tenho um
temperamento muito pudico. Minhas audácias de linguagem ou de
escrita são sempre ditadas pela
raiva. E algumas vezes pela vontade de rir e de provocar. E eu não
sou Badra, esse relato não é uma
autobiografia, mesmo que contenha muitos elementos pessoais.
Para voltar à sua pergunta, no que
me diz respeito nada mudou. Eu
vivo em um estado de irritação
constante contra a vulgaridade, a
mentira, a impostura e a injustiça.
E continuo a protestar, a denunciar o escândalo e o engodo.
Folha - Seu livro deixa a impressão de que tais pensamentos estão
muito presentes entre muitas mulheres desse lado do mundo. A ausência de mulheres muçulmanas
na literatura erótica se explica só
pela censura?
Nedjma - Ninguém consegue refrear a sexualidade, nem as leis,
nem as tradições. E, quando refreada, a sexualidade usa caminhos alternativos para viver e se
exprimir. Já a ausência de literatura erótica no mundo árabe não
diz respeito somente às mulheres
mas também aos homens. Todos
sabem que o mundo árabe é vítima de três tabus: política, religião
e sexo. Uma tripla couraça de
chumbo que consome toda a
energia vital, toda a verve e toda a
audácia da vida intelectual de Casablanca até Meca. O islã não tem
culpa nenhuma dessa derrocada.
Foram os muçulmanos, árabes e
whahabitas, que desfiguraram o
islã e lhe atribuíram os fascismos e
ostracismos nascidos de sua ignorância tanto em relação ao islã original quando àquele dos séculos
20 e 21. As mulheres, por sua vez,
sofrem em primeiro lugar por
causa de seus homens, já que são
mantidas deliberadamente afastadas da parte essencial da vida
política, econômica e intelectual.
Folha - A sra. usa pseudônimo.
Que tipo de pressão e alívio lhe foram impostos pelo livro?
Nedjma - Eu não senti pressão
nenhuma. Quis escrever este livro
e o escrevi. Com muito prazer. E
tenho a intenção de tornar a fazê-lo! O pseudônimo não passa de
uma "camisinha"! Estou me protegendo da mesquinharia, das
cusparadas e dos insultos. Estou
me protegendo da polícia que teria me interrogado e me fichado
como "Puta potencial. Elemento
perigoso. A vigiar."
Alívio? Por quê? Eu levo uma vida normal, sem nenhuma frustração, a não ser talvez uma frustração intelectual que me obriga a vir
a Paris regularmente para me
abastecer de livros, filmes e música. Tive a sorte de ir à universidade em uma região onde o analfabetismo bate recordes.
Exerço uma profissão pela qual
sou apaixonada e tenho total liberdade de movimentos e de
idéias... contanto que não as saia
espalhando por aí!
Folha - Nada está mudando na
educação das marroquinas?
Nedjma - Nada vai mudar enquanto os direitos fundamentais
não estiverem ao alcance de todos: direito à saúde, à educação, à
dignidade. No mundo árabe, nós
não somos cidadãos. Somos apenas súditos ou servos. Enquanto
tudo isso existir, há poucas chances das mulheres evoluírem. Mesmo assim, tenho esperança.
Como a sra. vê a relação entre o
islã e a condição feminina?
Nedjma - Posso testemunhar
que o islã é inocente de todas as
infâmias a respeito das mulheres
de que é acusado. O islã é baseado
em um livro, o Alcorão, ato inaugural e fundador de uma civilização que iluminou durante séculos
vários continentes, misturou as
raças e línguas mais diversas. O
problema do islã são os muçulmanos, especialmente os árabes,
que o transformaram desde o
princípio em sua moeda política e
cultural, apesar da "mensagem"
ser universal. As mulheres são vítimas de uma leitura restritiva e
obtusa de determinados versículos do Alcorão. Uma leitura masculina, é claro. Os homens têm dificuldade de admitir que determinados versículos do Alcorão caducaram no decorrer da história.
Alguns livres-pensadores tentaram dinamitar esses arcaísmos,
mas as forças da inércia saíram vitoriosas. Para conciliar islã e modernidade, basta voltar ao "espírito do Alcorão", uma mensagem
de liberdade, igualdade, inteligência e fraternidade, em vez de tomá-lo ao pé da letra.
Folha - Seu livro foi publicado em
algum país muçulmano? A sra.
acha que ele pode afetar as mulheres de alguma forma?
Nedjma - Francamente, não me
importo [se foi publicado]. Se eles
preferem ler as fatwas [decretos
religiosos] dos xeques e outros
charlatões, estão livres para fazê-lo. Não, não acho que meu livro
será publicado em um país árabe
nem muçulmano. E não sei o que
meu livro poderia lhes trazer. Um
testemunho de liberdade? Uma
coragem renovada? Algum conforto? Não sei mesmo. E não tenho a intenção de ser um modelo
nem um exemplo. Eu respeito demais os outros para dar lições a
quem quer que seja.
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