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GUILHERME WISNIK
Sucata high-tech
Anticlássico por definição, o arquiteto Frank Gehry opera estridentemente no registro da cultura de consumo
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ESTÁ em exibição na Mostra de
Cinema de SP o filme "Esboços para Frank Gehry", de
Sydney Pollack. Trata-se de um documentário sobre a vida, obra e processo de trabalho do arquiteto canadense radicado na Califórnia: ícone
de um momento em que os arquitetos ganharam proeminência midiática antes reservada a estrelas de cinema e artistas plásticos. O documentário, por isso, é ele próprio um
sintoma de época, se considerarmos
que os filmes em circuito comercial
sobre arquitetos são até hoje uma
raridade (exceção feita a "A Barriga
do Arquiteto", de Peter Greenaway,
que dialoga em delírio com a vida e
obra de Etienne-Louis Boulée).
Infelizmente, Pollack não escapa
de construir uma visão mistificadora de Gehry, como alguém guiado
por uma genialidade espontânea,
sensitiva e insondável. No entanto,
dada a proximidade entre ambos,
consegue traçar um retrato de seu
personagem livre de afetação, porque colado ao cotidiano. Surge daí
uma série de informações interessantes: as inseguranças do arquiteto
reveladas na insatisfação com o trabalho "comercial" que fazia até o final dos anos 70, sua fragilidade como imigrante judeu de classe baixa
que o levou a trocar o sobrenome
Goldberg por "Gehry", sua entrada
no campo das artes por meio da cerâmica, a relação extremamente caseira com a equipe de assistentes
(apesar do porte dos projetos), e, sobretudo, seu método de trabalho baseado em maquetes de papel, minuciosamente escaneadas por um software que as transpõe para coordenadas geométricas bidimensionais.
Mas o que torna o filme impactante acima de tudo é a potência visual
da sua obra, cujo apurado senso coreográfico (mais do que cenográfico) consegue ativar toda a paisagem
à volta. É o que acontece no Guggenheim de Bilbao, onde a imaterialidade das chapas de titânio que recobrem as fachadas dá uma surpreendente homogeneidade à irregularidade volumétrica, dando-lhe um
mistério sensual. E também na sua
própria casa, em Santa Mônica, um
sobrado típico de subúrbio embrulhado por um invólucro fraturado:
"corpo estranho" feito de alumínio
corrugado, compensado, grade de
correntes e vidro, que gera espaços
residuais entre as "duas" casas.
Conhecido pelo uso expressivo
que faz dos materiais "pobres", como o papelão, a tela e o compensado,
Gehry conserva uma certa sujeira ao
manipular os metais nobres, o que
evita o detalhismo caprichoso e as
idiossincrasias intimistas em seus
projetos. Está aí a pulsão contraditória que parece governar a sua obra:
se, por um lado, elas são expressões
plásticas únicas e autorais, são, por
outro, afirmações de uma exterioridade radical, presença física das coisas sem afeto pelos pormenores. Celebrações do hedonismo criativo,
não deixam, ao mesmo tempo, de
parecer obras inacabadas.
Anticlássico por definição, Gehry
opera estridentemente no registro
da cultura de consumo, partilhando
com os grandes artistas americanos
do século 20 uma confiança afirmativa na capacidade artística de formalizá-la.
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