São Paulo, segunda-feira, 30 de outubro de 2006

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GUILHERME WISNIK

Sucata high-tech


Anticlássico por definição, o arquiteto Frank Gehry opera estridentemente no registro da cultura de consumo

ESTÁ em exibição na Mostra de Cinema de SP o filme "Esboços para Frank Gehry", de Sydney Pollack. Trata-se de um documentário sobre a vida, obra e processo de trabalho do arquiteto canadense radicado na Califórnia: ícone de um momento em que os arquitetos ganharam proeminência midiática antes reservada a estrelas de cinema e artistas plásticos. O documentário, por isso, é ele próprio um sintoma de época, se considerarmos que os filmes em circuito comercial sobre arquitetos são até hoje uma raridade (exceção feita a "A Barriga do Arquiteto", de Peter Greenaway, que dialoga em delírio com a vida e obra de Etienne-Louis Boulée).
Infelizmente, Pollack não escapa de construir uma visão mistificadora de Gehry, como alguém guiado por uma genialidade espontânea, sensitiva e insondável. No entanto, dada a proximidade entre ambos, consegue traçar um retrato de seu personagem livre de afetação, porque colado ao cotidiano. Surge daí uma série de informações interessantes: as inseguranças do arquiteto reveladas na insatisfação com o trabalho "comercial" que fazia até o final dos anos 70, sua fragilidade como imigrante judeu de classe baixa que o levou a trocar o sobrenome Goldberg por "Gehry", sua entrada no campo das artes por meio da cerâmica, a relação extremamente caseira com a equipe de assistentes (apesar do porte dos projetos), e, sobretudo, seu método de trabalho baseado em maquetes de papel, minuciosamente escaneadas por um software que as transpõe para coordenadas geométricas bidimensionais.
Mas o que torna o filme impactante acima de tudo é a potência visual da sua obra, cujo apurado senso coreográfico (mais do que cenográfico) consegue ativar toda a paisagem à volta. É o que acontece no Guggenheim de Bilbao, onde a imaterialidade das chapas de titânio que recobrem as fachadas dá uma surpreendente homogeneidade à irregularidade volumétrica, dando-lhe um mistério sensual. E também na sua própria casa, em Santa Mônica, um sobrado típico de subúrbio embrulhado por um invólucro fraturado: "corpo estranho" feito de alumínio corrugado, compensado, grade de correntes e vidro, que gera espaços residuais entre as "duas" casas.
Conhecido pelo uso expressivo que faz dos materiais "pobres", como o papelão, a tela e o compensado, Gehry conserva uma certa sujeira ao manipular os metais nobres, o que evita o detalhismo caprichoso e as idiossincrasias intimistas em seus projetos. Está aí a pulsão contraditória que parece governar a sua obra: se, por um lado, elas são expressões plásticas únicas e autorais, são, por outro, afirmações de uma exterioridade radical, presença física das coisas sem afeto pelos pormenores. Celebrações do hedonismo criativo, não deixam, ao mesmo tempo, de parecer obras inacabadas.
Anticlássico por definição, Gehry opera estridentemente no registro da cultura de consumo, partilhando com os grandes artistas americanos do século 20 uma confiança afirmativa na capacidade artística de formalizá-la.

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