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Sem filhos, autora adotou sertanejos
Em Não me Deixes, no sertão do Ceará, a presença de Rachel de Queiroz ainda é marcante para os moradores
Vivência no interior do Estado moldou a obra da escritora, que tirou dali a inspiração para os romances que escreveu
DO ENVIADO A QUIXADÁ (CE)
"Minha maternidade é
inesgotável", gostava de dizer Rachel de Queiroz.
Por uma triste ironia, o sonho da maternidade ela nunca pôde realizar a contento:
teve apenas uma filha, que
morreu ainda bebê.
Mas é em termos maternais que costuma ser lembrada em Não me Deixes.
"Ela era uma mãe, se preocupava com todos", diz, logo
de cara, Manuel Dias Tavares, 67.
Tavares chegou ali ainda
garoto. O pai dele trabalhou
com Daniel, pai de Rachel. A
mãe foi cozinheira dos Queiroz. Na fazenda ele cresceu,
trabalhou e formou família.
Hoje é ele quem cuida do
lugar. Quando o tempo ajuda, dedica-se às plantações
de milho e algodão e às criações de bode e ovelha.
Não tem sido fácil nos últimos meses.
"Neste ano a seca tá muito
pior", diz, para em seguida
lamentar também os seis meses sem chuva.
Seria exagero, porém,
compará-lo a Chico Bento,
personagem de "O Quinze"
que sai do interior do Ceará
fugindo da seca. Açudes foram construídos na região e
um caminhão-pipa abastece
regularmente as casas.
"Hoje é mais fácil de viver.
Todos recebem aposentadoria. Os jovens podem estudar. Só os velhos vão ficando
por aqui", diz ele.
Um deles é justamente o
Véio, como é conhecido Pedro da Silva, 85 anos.
Vive ali desde 1959. Tinha
fama de falador, mas a dificuldade de audição deixou-o
mais calado. Porém, foi só
gritar "Rachel" ao seu ouvido
para ouvir uma resposta não
de todo inesperada.
"Sinto muita falta dela. Era
como uma mãe, entende?"
O Véio conta que Rachel o
levava ao médico e comprava
remédios para ele. Uma vez
quis levá-lo para consultar
um cardiologista no Rio, mas
o Véio teve medo do avião.
Então ele fica em silêncio,
parece que esqueceu nossa
presença. Já nos levantávamos para ir embora quando
concluiu: "É como se ela estivesse aqui na minha frente".
COZINHEIRA
Desde que Rachel morreu,
em 2003, a casa de Não me
Deixes passa a maior parte
do tempo fechada.
A irmã caçula da autora,
Maria Luíza, vive no Rio e
pouco tem ido lá neste ano
por causa da seca.
Quem nos abriu a casa foi
Rosita Ferreira de Souza, 68,
professora aposentada que
foi amiga íntima de Rachel.
A casa fica debaixo de uma
grande árvore, uma das raras
sombras de Não me Deixes.
Por ali tem passado dezenas de estudantes curiosos
por saber mais sobre a escritora centenária. Souza tem
muito a dizer.
"Rachel viveu mais de 60
anos no Rio, mas aqui era o
lugar onde ficava mais feliz.
Chegava a ficar às vezes seis
meses seguidos na fazenda."
Nestes períodos de isolamento no sertão nasceram algumas de suas histórias.
Atrás da casa de Não me
Deixes, num pequeno quarto, ela escreveu parte de "Dora, Doralina" (1975) e "Memorial de Maria Moura"
(1992), seu último romance.
"O sertão era tudo para a
obra dela. A inspiração para
escrever veio toda do povo e
das histórias da região", diz
Maria Luíza por telefone.
Mas nem o quarto de escrita, nem a biblioteca. O lugar
predileto de Rachel na casa
era a cozinha, explica Souza.
"Ela dizia que gostava
mais de ser cozinheira do que
de ser escritora."
Que essa mulher recatada
tenha criado, de Conceição a
Maria Moura, algumas das
mais modernas personagens
femininas da literatura brasileira é uma das contradições
que até hoje encantam na
obra de Rachel de Queiroz.
(MARCO RODRIGO ALMEIDA)
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